No Corinthians de Sócrates votavam todos. Votava o presidente e o director. O médico e o massagista. O jogador e o treinador. Votavam todos e para tudo. Quando deviam viajar, se faziam ou não concentração, se iam de autocarro ou avião. Quem deviam contratar e quem deviam dispensar.

Tudo simples e feito com respeito pela nobreza humana. «Votámos até para escolher o treinador», conta Washington Olivetto ao Maisfutebol. Uma pessoa, um voto: fosse o presidente... ou o roupeiro. Utópico? No Brasil do início dos anos 80 foi possível. Detalhe: o país vivia em ditadura militar.

O movimento ficou conhecido como Democracia Corinthiana. Washington Olivetto é o mais respeitado publicitário do Brasil, dono da maior agência independente do mundo. Em 1982 era vice-presidente do Corinthians. «Na altura da ditadura nós sonhávamos com a democracia. Lutávamos pela democracia.»

Morreu Sócrates, o Doutor

O Corinthians servia por isso de exemplo num Brasil oprimido pela ditadura militar que governou o país durante vinte anos. Um pouco como Salazar fez por cá. «Votávamos para tudo. Votar era quase um vício», ironizou Sócrates. «Votávamos até para decidir quantas vezes o autocarro devia parar pelo caminho.»

Um acidente cósmico na origem

Washington Olivetto foi o criador da denominação Democracia Corinthiana. Para ele o movimento só foi possível devido a um quase acidente cósmico. «O Corinthians juntou no início dos anos oitenta, quando a ditadura militar perdia força, um grupo de atletas e dirigentes jovens, inteligentes e que partilhavam ideais.»

O líder era Sócrates, ele que era licenciado em medicina. Na linha da frente estavam ainda Wladimir, licenciado em Ciências Sociais, e Casagrande, um libertino de consciência social. «Era um grupo de jogadores inteligentes, cultos, que tinham estudado e defendiam ideais. Eram pensadores militantes.»

Um dia, numa digressão pelo Japão, Casagrande apresentou uma preocupação: estava a morrer de saudades da noiva. O grupo juntou-se, votou e decidiu permitir o regresso do avançado ao Brasil. «O nosso lema era Liberdade com responsabilidade. Dava-se total liberdade e exigia-se responsabilidade», diz Olivetto.

«Directas já», escreviam nas camisolas

Ora num Brasil que pura e simplesmente não votava - a ditadura militar viva da eleição pelo voto indirecto (apenas permitido aos congressistas) -, o Corinthians não se limitava a votar: reivindicava a democracia. «Usávamos a camisola para passar mensagens políticas, onde agora há publicidade», conta.

«Tivemos muitos problemas com os militares. Proibiam-nos as mensagens, coagiam-nos e perseguiam-nos.» O movimento, esse, estava imparável. «Pessoas de todas as áreas juntaram-se à luta. Jorge Amado escrevia sobre nós, Gilberto Gil dedicou-nos uma música, Rita Lee cantava com a camisola do Corinthians.»

Os líderes do movimento não ficavam pelo relvado. «Eu e o Adilson Alves, que éramos vice-presidentes, o Sócrates e o Wladimir discursávamos em congressos. Chegámos a falar para um milhão de pessoas.» A exigência era sempre a mesma: «Directas já», gritavam.

Ora nesta segunda-feira, 15 de Novembro, cumprem-se 28 anos que o Brasil foi mesmo às urnas. Pela primeira vez em dezoito anos o povo foi chamado a eleger os governadores. «Nessa altura colocámos uma mensagem nas camisolas a dizer Dia 15, vote

A ditadura só terminou em 1985 com a eleição de Tancredo Neves: o presidente que nunca o foi (morreu antes da posse). Mas o movimento já era um sucesso. «A Democracia Corinthiana foi acima de tudo uma grande equipa. Foi duas vezes campeã paulista. Mostrou ao país que era possível ser livre, e vencer.»