Uma data de homens a correr atrás de uma bola.

Já foi um dos maiores insultos ao futebol. Uma frase de quem o queria desvalorizar. Resumi-lo assim, hoje em dia, acaba por ser um elogio. Até porque o futebol é mais complexo. Há uma velha frase da gíria da bola que diz «o futebol é isto» e que pode ser colocada no final de praticamente qualquer discurso. Mas o futebol já não é só isto: é uma soma de tudo isto.

O futebol é cada vez mais Política.

Uma data de homens a correr atrás de uma bola antes de outra data de homens se sentar em debates de «Olhe que não» e «Ouça» e «Veja aqui este frame porque essas cinquenta repetições não mostram tão bem quanto esta imagem pixelizada e estática». Debates onde nunca se perde: por vezes não se ganha. Ou, como um dia disse Narciso Miranda, ganha-se perdendo. O rival pode marcar mais ou ter mais pontos, mas há sempre uma boa explicação que não o ter marcado mais ou somado mais pontos.

O futebol é, provavelmente, a única área que dá azo a horas e horas de programação sem que se fale de si próprio. Apenas de tudo o que está à volta. Há gente a falar nas televisões que nunca comentou uma jogada, que não de bastidores, um ataque, que não verbal, uma defesa, que não de honra, ou um drible, que não à verdade.

O futebol é cada vez mais Finanças.

Uma data de homens a correr atrás de uma bola antes e depois de outra data de homens se debruçarem sobre Relatórios e Contas, comunicados à CMVM, balanços e balancetes. Os lucros que não esticam, os passivos que não descem, os credores que não desaparecem, os salários que não encurtam.

Grita-se «Vendaaaaaa!» como quem grita «Goloooooo!», diz-se adeus, faz-se a conta ao que sobra e ao que dá para investir. Traça-se projetos, atiram-se ideias, faz-se F5 à procura de novidades.

O futebol é cada vez mais Geometria.

Uma data de homens a correr atrás de uma bola antes de outra data de homens traçarem linhas em cima das imagens dos primeiros. Paralelas, perpendiculares, pontos de fuga. O jeito que deram as aulas de EVT.

Nunca nenhuma linha terá o encanto do ziguezague de Maradona entre os ingleses ou da curva da bola chutada por Roberto Carlos antes de entrar na baliza da França.

O futebol é cada vez mais Direito. Mas torto. Direito com D grande.

Uma data de homens a correr atrás de uma bola enquanto outra data de homens desafia a justiça. Os colarinhos brancos de Cantona mereciam continuar a ser os únicos com espaço no futebol. As fugas que interessam deveriam ser as de Ronaldo.

O problema não é o futebol ser isto. Porque o mundo também tem o negro e o cinzento na palete de cores. O problema foi terem levado o futebol a ser isto.

O futebol é cada vez menos a data de homens que corre atrás da bola.

É cada vez menos o verde da relva.

É cada vez menos o cachecol esticado.

É cada vez menos o grito de apoio.

É cada vez menos o remate ao ângulo.

É cada vez menos o som da bola a bater na trave.

É cada vez menos o golo no último minuto que arrepia a pele.

É cada vez menos o túnel que faz soltar um ui.

É cada vez menos o defesa que salva em cima da linha.

É cada vez menos o resumo alargado, o golo da semana, a Bola de Ouro, a chuteira preta.

É cada vez menos o amigo de sempre que só conheço do estádio.

É, enfim, cada vez menos bonito.

O futebol hoje é tanta coisa que é cada vez menos o futebol.