Ainda nos devem dois campeonatos do mundo e vários anos de interregno por altura das grandes guerras. Devem-nos vários jogadores atirados para as fileiras de combate, onde destruir adversários era muito mais do que deixá-los para trás com a bola nos pés.

A guerra deve-nos, provavelmente, a hipótese de ver a melhor Jugoslávia de sempre, numa fase final. Deve uma presença no CAN ao Togo; uma casa a sério, a Paulo Fonseca e ao seu Shakhtar.

Conflitos e situações políticas internas, mesmo que diferentes de um estado de guerra, também tiraram um Mundial a Johan Cruijff, outro à União Soviética e a vida ao colombiano Escobar.

A guerra roubou palco à Wunderteam austríaca, privou o mundo de Sindelar, fez de sérvios, kosovares, albaneses ou croatas refugiados ou nómadas. Trouxe muitos a Portugal, roubou a real identidade a outros tantos.

Não é difícil concluir que a guerra já teve protagonismo a mais no futebol e quando se pensa que é coisa do passado convém lembrar que a Síria fez toda a campanha de apuramento para o Mundial da Rússia sem jogar em casa. Fez da Malásia a Síria que já não tem. Existe, mas não como deveria.

Chegar mais longe do que nunca, nestas condições, é a primeira grande vitória do Mundial. Sejamos francos: há muito pouco interesse numa fase de apuramento, quando comparado com toda a magia da fase final. Por isso, acompanhar a saga da Síria foi do melhor que este período deu.

Mesmo sabendo que a própria seleção não é consensual no país. Não se pode falar de um povo unido em torno de um campo de futebol porque há quem veja a seleção da Síria como um produto do regime de Bashar Al-Assad. Omar Al Somah, por exemplo, o homem que levou o narrador sírio à loucura com o golo em Teerão que apurou o país para o play-off com a Austrália, esteve cinco anos afastado da seleção por apoio aos opositores do regime. Firas al-Khati, talvez o melhor jogador, esteve fora pelo mesmo período.

Não nos enganemos, portanto. Há muito de político por trás da atual seleção síria, mas é tentador escolher só o futebol e tentar separá-lo do resto. Para quem gosta deste mundo, não é difícil torcer pelo sucesso de um país sem casa, devastado pela guerra e que, a somar a tudo isso, nunca teve visibilidade suficiente num desporto que até é democrático o suficiente para projetar jogadores dos quatro continentes e de países sem expressão, como a Libéria de Weah, o Togo de Adebayor, a Arménia de Mkhytaryan ou Trinidad de Dwight Yorke.

Da Síria, nada.

Provavelmente, porque o remate de Al Somah, desta vez, foi uns centímetros mais para a direita do que o previsto, também não será desta que um sírio entrará para a história do futebol. E se aquele pontapé tivesse entrado, nada garantia que assim fosse. Havia um playoff para disputar e não são poucas as equipas que passaram pelo Mundial sem deixar pegada. Alguém sabe dizer o nome de um chinês do Mundial 2002? De um zairense de 74? Um salvadorenho de 82?

Mas, como quando os marfinenses paravam a guerra civil para ver os jogos de 2006 ou o Shakhtar festeja um título em Lviv, ver a Síria ficar tão perto, mesmo que caindo em lágrimas, não pode deixar de ser visto como uma vitória do futebol sobre a guerra.

Tudo somando, ainda estamos a perder. Este é pouco mais do que um golo de honra. Mas é também um raro caso em que é bem melhor que não haja oportunidade para empatar.

«O GOLO DO EDER» é um espaço de opinião no Maisfutebol, do mesmo autor de «Cartão de memória».Porque há momentos que merecem a eternidade e porque nada representará melhor o futebol português, tema central dos artigos, do que o minuto 109 de Paris. Siga o autor no Twitter.