O mal menor. O mal menor será continuar a ouvir Marcelo Rebelo de Sousa nesta ou noutra televisão qualquer e poder mudar de canal num reflexo do polegar no telecomando, em vez de o ter a decidir sobre assuntos de Estado. Têm razão todos os que de vocês perguntam: que raio tem isto a ver com o jogo? Na verdade quase tanto como quando os políticos embalam em  hat-tricks e  penalties para dar exemplos fáceis e que toda a gente perceba, depois de dribles demagogos e do teatro assim que caem na «piscina». Afinal, política é isto mesmo. Como o futebol. 

Neste país de duodécimos, ainda conseguimos pagar o nosso ópio. Cada vez menos nos estádios e mais à frente de um ecrã (nem que seja o do café da esquina), e, sobretudo, atrás de uma mini comprada em  pack no hipermercado. Pagamos. E aos políticos também, que se fazem pagar e bem. Mesmo em crise. Neste país a respirar por ventilação artificial, em coma induzido, gostamos de perdoar aos falhados, dar-lhes mais oportunidades de continuar a ser mais ou menos quem foram. Talvez apenas um pouco mais longe das câmaras alguns. Ou nem por isso, no caso dos mais mediáticos. Damos-lhes uma cadeira de pele atrás de uma secretária que lucra; e depois recordamo-lhes os nomes numa notícia ouvida em fundo enquanto se sorve o jantar. O mal menor.

Perdoamos o falhanço, mesmo aqueles que não se podem falhar, à frente da baliza e sem guarda-redes. E, se pudermos, ainda lhes damos outra vida, como comentadores. Um novo «ele», uma nova vida. Os nossos sábios, os nossos magníficos teóricos, a consciência que faz mover o país, todos eles foram os verdadeiros falhados da vida. E ouvimo-los, de bom grado e com uma atenção desmedida, criticar com uma solenidade inabalável o nosso mal e o dos outros. Eles são donos da verdade. E usam-na como querem.

Marcelo, agora derrotado por um governante que, a mal ou bem, ficará para a história, é apenas um exemplo. O político que sobreviveu a uma dicção estranha, e passou a ler tantos livros por semana como Rogeiro, anda há anos a interpretar as decisões e expressões de Governo e oposição, e também, quando calha, os resultados desportivos. O que se seguiu foram ondas de choque, de Marques Mendes ao inacreditável regresso de José Sócrates, apesar da imaginação que nos faz rir sempre que a lembramos e que disparava quando ia a caminho da escola.

Cristiano Ronaldo ganhou a Bola de Ouro! E fez-nos felizes. Encheu-nos de orgulho. Esquecemos por uns instantes as contas que temos para pagar, e as subtracções que fazemos de cabeça dia a dia. As percentagens do desemprego, o limiar da pobreza. A Standard and Poor´s e os outros vampiros do mercado. Inspirámos fundo a nuvem de ópio e deixámo-nos levar, da mesma forma que um grande jogo nos deixa em êxtase por muitas horas. E preenche os vazios dos nossos pensamentos. Cavaco fez dele Grande Oficial da Ordem do Infante, e o ópio voltou. Nem que seja pela discussão. Marcelo é Grã-Cruz da mesma ordem, um degrau acima do nosso craque, pela mão de Jorge Sampaio. E não me lembro de o termos discutido. 

Somos portugueses, e temos de ser para ele o que fomos para os outros. Ronaldo nunca será um falhado mesmo que não marque mais um golo até ao fim da carreira. E isso parece tão impossível. E vamos ter de perdoar-lhe todos os decisivos que falhar, mesmo que seja de baliza aberta e sem guarda-redes. Quando acontecer. Um dia, daqui por muitos anos. Décadas, se puder ser. Vai custar, mas terá de ser. Devemos-lhe isso. E ele é bem mais do que os outros.

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«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no  FACEBOOK e no  TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.