O meu pub em Hammersmith». A esta zona da cosmopolita Londres chega gente de todo o mundo. Enquanto se bebe uma pint, fala-se de desporto: futebol, basquetebol, ténis, Fórmula 1, o que for. Depende de quem passa pela porta. O consumo é obrigatório e as bebidas nunca são por conta da casa. Aqui também se pode falar da NFL, mas se alguma vez se proferir a palavra «soccer», Woody, o cozinheiro, tem cara de Vinnie Jones e andou na escola do Cantona. Ah, e é primo do Roy Keane.

Porta aberta para mais um sábado de futebol . Há Premier League, há Championship e até FA Cup. Imagine o trabalho.... Chegam mais barris de cerveja e chegam dois espanhóis também. «Vão passar El Classico?» - claro que sim, ainda há espaço para isso. Ficaram e, como bons espanhóis, conversaram aos berros sobre o Barcelona-Real Madrid. «O Barça deu ao futebol a melhor equipa da história!», clama um. «E o Real Madrid é melhor clube do mundo, o mais titulado!» - «La p*** madre, isso porque fizeram o maior roubo da história do futebol.»

Falam de Alfredo Di Stéfano.

Oiço-os num debate secular.

Culé - «Se não fosse o regime de Franco, o Real Madrid não era nada!»

Merengue - «Desculpas e vitimização. Por acaso não havia pessoas do regime na Catalunha, no Barcelona?»

Culé - «Di Stéfano foi-nos roubado, o mundo inteiro sabe.»

O Fulham só joga às 17h30, por isso os adeptos que não viajaram até Southampton ainda têm tempo para reparar na discussão . Clientes habituais, sabem que
yours truly gaba-se de possuir de enorme sabedoria do mundo e arredores. - De que falam aqueles dois?

«Do Barcelona-Real Madrid de hoje. Quer dizer, do caso Di Stéfano.»

- Alfredo di Stéfano?

«Não conheces a história? Di Stéfano quando foi para Espanha, foi para a Catalunha. Teve casa, deu entrevistas, vestiu a camisola do Barça e tudo.»

- Então como foi parar ao Madrid?

«Para isso, é preciso ir até à Argentina.»

Mudo o barril. Começo...

«Di Stéfano estreou-se no River Plate, em 1945, aos 19 anos. Uma greve de futebolistas na Argentina em 1948/49 levou Don Alfredo até à Colômbia.»

- Uma greve?

«Sim, Os futebolistas pediam melhores condições durante o primeiro governo de Perón. Saíram em desacordo com a situação em que viviam e mudaram-se para a Colômbia, que os aceitou. Sem ligar à FIFA, sem pagar por transferências.»

- Ui, e o Blatter da altura não fez nada?

«Fez. Proibiu os colombianos de realizarem particulares fora do país. Em 1951, houve uma solução a que se chamou Pacto de Lima: os colombianos ficavam com os jogadores, mas não os podiam transferir até outubro de 1954. Depois disso, tinham de regressar ao clubes de origem. No caso de Di Stéfano, ao River Plate.»

Sirvo uma
pint. Continuo.

«Em 1952, Di Stéfano defrontou o Real pelos Millonarios de Bogotá. Encantou. O Barça já o seguia e foi mais rápido. Chegou a acordo com o River Plate. Em 1953, Di Stéfano foi para a Catalunha.»

«Entretanto, o Millonarios usou o Pacto de Lima para reclamar direitos. Argumentou que Di Stéfano lhe pertencia. O Real Madrid negociou em Bogotá e chegou a acordo com eles.»

- Bolas, pertencia a River Plate, Millonarios, Barça e Real Madrid. E a nenhum deles, também.

«Mais sensível do que isso. Em fevereiro deste ano, 2013, o jornal Vanguardia publicou novas provas do caso. Um papel do presidente da federação de futebol para o Delegado Nacional de Desporto no qual dizia que o contrato entre Real Madrid e Millonarios não vale de nada porque lhe falta a concordância do River Plate e a aprovação da federação.»

«Espanha vivia numa ditadura e o regime do Generalíssimo Franco espalhava-se pelas instituições. Todas as federações respondiam à Delegação Nacional de Desporto. Que proibiu a contratação de jogadores estrangeiros no verão de 1953, ano em que Di Stéfano chegou à Catalunha.»

- Que conveniente!

«Os do Barça pensam o mesmo, que foi pressionar o clube a chegar a um acordo com o Real. Os de Madrid dizem que era apenas o regime a ser regime, a querer usar o desporto como propaganda para haver mais espanhóis nas equipas.»

«Entretanto, é público, o Barça negociou Di Stéfano com a Juventus.»

- E a FIFA? Não fez nada?

«A FIFA? Estávamos na Espanha de Franco. A federação, politizada, interveio, Definiu-se que Di Stéfano jogaria duas épocas no Real Madrid, outras duas no Barcelona. Intercaladas. Ou seja, no final de cada mudaria de clube.»

«Santiago Bernabéu, que era presidente do Real, e Martí Carretó, do Barça, confirmaram o acordo em documento enviado à Delegação Nacional de Desporto.»

- Mas como é que ele nunca chegou a jogar pelo Barcelona?

«O presidente do Barça foi muito criticado e demitiu-se. O clube ficou entregue a uma comissão gestora, que em outubro anunciou a renúncia ao passe de Di Stéfano. Motivados pelo regime do Generalíssimo, como garantem os adeptos do Barça? Ou má gestão como argumentam os de Madrid?»

- Sempre ouvi dizer que o Real Madrid era o clube do regime.

«Ou o regime é que era do Real Madrid, como eles dizem.»

«Também é verdade que nos primeiros anos do Franquismo, o Barcelona foi a equipa mais vitoriosa do país. Aliás, tinha acabado de ter uma temporada em que venceu todas as provas em que entrou.»

«Mas certo, certo é isto:

Antes de Di Stéfano, o Barça era a equipa com mais troféus no país.Tinha 6 campeonatos e 12 Taças.

Em 22 campeonatos realizados, o Real Madrid tinha dois. Não vencia um há 20 anos.

Com Di Stéfano, ganhou 8 campeonatos em 11 épocas. E cinco Taças dos Campeões Europeus, criada na altura.

O futebol espanhol mudou de epicentro. E o sismo abriu uma brecha entre Madrid e Barcelona.»

- Um roubo!, insiste o
culé. Encolhe os ombros o merengue. Venha o jogo, digo eu.

«O meu pub em Hammersmith» é um espaço do jornalista Luís Pedro Ferreira. Pode segui-lo no Twitter