Tenho amigos que são assim. Fazem aquele olhar de desdém, quase tocando o ombro com o queixo, e repetem como filosofia de vida: Quero lá saber se jogam bem, o que me interessa é que ganhem! Quantas vezes ouvimos isto ao longo da nossa existência como um elástico gigante que nos puxa de novo à realidade, precisamente quando estamos no melhor do nosso sonho, em frente à baliza, sem guarda-redes, no último minuto do jogo que vale o título? Quantas vezes vemos um antigo avançado no banco, com a braçadeira de treinador, festejando vitórias atrás de vitórias, empunhando galhardetes adversários na ponta da lança como D. Quixote de la Mancha, depois de derrubar moinhos de vento?

Houve Cruijff. O holandês que agia enquanto os outros ainda pensavam, como recordou várias vezes Valdano, montou um Dream Team no Camp Nou, com Guardiola, Bakero, Beguiristáin, Goikoetxea, Hagi, Koeman, Laudrup, Romário e Stoichkov. Nunca um culé gritou tão alto més que un club como então: tetracampeão no início da década de 90, vencedor da Taça UEFA em 89 e da Taça dos Campeões e Supertaça Europeia em 92, num total de 11 títulos que viraram os holofotes de novo para a Catalunha. Já com Figo, as duas últimas épocas de fracasso, no entanto, encerraram o capítulo do treinador blaugrana mais bem sucedido de sempre. Como se a história tivesse sido escrita por uma caneta de tinta mágica, que desaparece.

Ei, não é bem assim... É verdade. Ninguém em Barcelona se esqueceu do agora conselheiro Cruijff. Anos depois, aquela era ficou marcada pelos resultados, mas também por grandes jogos, exibições que espalharam magia pelas bancadas, que incendiaram um movimento, como se Gaudí tivesse descido do Parc Güell e reencarnado num estrangeiro visionário que elevava o futebol a um poema emocionado. Esse Barcelona, o Barcelona de Cruijjf, era desfraldado nas bandeiras representativas da Generalitat da Catalunya, no Parlamento, símbolo do sentimento da unidade de uma região.

Chegaram Bobby Robson e o então tradutor Mourinho, Van Gaal, Serra Ferrer e outra vez Van Gaal, mantendo uma ligação estreita à Holanda, depois das interrupções britânicas e espanholas. Saviola, Kluivert, Overmars, Cocu, Davids, Sorín, De Boer, Riquelme, Cocu, Geovanni, Rochemback, Petit, Zenden, Simão, Rivaldo, Alfonso, Amunike, Litmanen, Anderson, Dugarry, Giovanni, Couto, Vítor Baía, De la Peña, Popescu, Blanc e Pizzi [ Ufa!] chegaram e partiram com maior ou menor sucesso. Rijkaard ergueu a mão em sinal de stop ao descalabro, chamou Deco, encontrou o melhor Ronaldinho, um Etoo explosivo e um Messi a despontar, e aguentou a equipa no topo até ser campeão continental. Em 2006, gritou-se a plenos pulmões: Blau-grana al vent/ un crit valent/ tenim un nom/ el sap tothom/ Barça, Barça, Baaarça. Mas caiu logo depois.

Com Guardiola, mas sem Ronaldinho, Deco e Rijkaard, a equipa cresce hoje sobre a cantera. Sobre Valdés, Puyol, Piqué, Xavi, Iniesta e Bojan, e bebe deles a sede de jogar à bola. Etoo rejuvenesceu e voltou a ser mortífero, há o genial Messi para tornar rectas as curvas e Henry para alargar o jogo a todos os quadrados do tapete. Hleb e Daniel Alves juntaram-se ao carrossel catalão - que só tem paralelo no Arsenal ou no Zenit -, que entusiasma e cilindra quem se lhe atravessa à frente. As jogadas saem como se fossem reflexo de uma memória muscular, de algo que se imita por se ver uma vez a fazer, como a aliança que coçamos no dedo sem estar lá há meses. A verdade é que é mais do que futebol, é uma cultura a espinha dorsal do Barça. Olhamos para a manta de retalhos galáctica do Real e sorrimos. Jo sóc culé! E vós, os que pensam nos resultados, deveriam ser vinte anos treinados por Benítez, com sucesso idêntico ao de Luís Campos!

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.