Deus ex machina! Deus ex machina! Como numa peça de teatro grega de mau gosto, Zeus desce suspenso por cabos para atar as pontas soltas da estória. Enquanto um país implode inteiro em ondas de assaltos, discussões sobre o preço das octanas e a intensificação do pavor de voar, a competitividade de um filho de pais cabo-verdianos, nascido na Costa do Marfim, mas português de espírito e campeão de coração, traz de volta a honra e embevece os olhos de milhões a olhar para a bandeira. Uma força extraordinária sustenta-o no terceiro salto, dá-lhe o final feliz que merece.

Dezassete anos depois do segundo e último título mundial do futebol português, selado na Velha Luz pelo pé direito de Rui Costa, não se conhece alquimista capaz de voltar a juntar talento ao trabalho e de criar equipas vencedoras. Uma pitada de drible, um remate eficaz, três medidas de arrojo, quatro de inteligência, mexer bem.... Em nome do presente e de um treinador campeão do mundo reduziu-se o investimento da formação e, aos poucos, começou a faltar a capacidade de dizer presente. Primeiro em finais, depois em meias-finais e daí para baixo. O estatuto deixou de ser o mesmo.

Recuperou-se o alquimista, enriquecido por 17 anos a vaguear pelo mundo, mas hoje mais preocupado, por ser essa a sua missão, em transformar rápido carvão em ouro, do que em lapidar diamantes para reinventar algo novo. O presente é mais importante do que o futuro, apesar de ele ter sido importante para o presente no passado. O deus saído da máquina tem surgido uma vez atrás da outra para atar pontas soltas. Cristiano Ronaldo, Ricardo Quaresma, Manuel Fernandes, João Moutinho, Miguel Veloso e outros foram aparecendo nos respectivos clubes, sobretudo em Alcochete, onde há largos anos se trabalha para o amanhã, corrigindo as falhas da história.

De quatro em quatro anos, dez milhões de portugueses acreditam que por o país ter surpreendido o resto do planeta séculos atrás temos dentro de nós algo especial que nos faz ombrear com outros de países mais ricos, mais numerosos, mais avançados tecnologicamente e na metodologia de treino, e mais interessados, sobretudo. Num país em que só pensa em futebol, e quase nunca na beleza do jogo mas em questões adjacentes como ganhar, perder e o árbitro, só se fala de atletismo, natação, judo e outras mais modalidades durante os Jogos Olímpicos.

Recordo uma escola secundária de aspecto pré-fabricado, campo de alcatrão, com duas tabelas e uns traços pintados a laranja a cortá-lo a meio. Balizas de andebol/futebol nas pontas, um rectângulo de areia ao fundo para uns saltinhos e uma trave para as elevações. Pavilhão de mosaicos abrasivos para o voleibol, o badminton e os trampolins, um ginásio para pinos e cambalhotas. E há quem não tenha tanto. Um ano escolar era a soma disto tudo, uma mistura que nunca agradava a ninguém e motivava poucos. Só os núcleos mantinham vivas uma ou outra modalidade. Na Universidade, a falta da obrigação de educar o físico ainda tornava a história mais dramática. Paradoxalmente, nos Estados Unidos, bebe-se das escolas, do liceu às universidades, o sangue novo da maior parte das modalidades.

Um dia, as roldanas vão enferrujar e custar a mover-se, deus ex machina não chegará a tempo para corrigir a trama. Estará Portugal, que infelizmente não tem adeptos de desporto mas de clubes, preparado para sobreviver a uns Jogos sem uma medalha ou a uma geração sem craques na relva? Provavelmente esse sangue que nos fez donos de metade do mundo no passado ainda exista em algumas veias e surja um ou dois sobreviventes da falta de cultura e da política desportiva reinante. Mas isso será até quando?

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.