Pouco depois do fim do Portugal-França entrei no hotel «Porto Grande», do Mindelo. Sempre ao fim de tarde quer a esplanada quer o hall tem algum movimento de pessoas a entrar ou a sair ou apenas a espairecer, mas ontem estava tudo completamente vazio de vivalma e nem aqueles ruídos mínimos de ar circulando pelas frinchas das portas eram audíveis. De modo que fiquei algo espantado ao subir as escadinhas que dão para o bar: O local estava repleto como um ovo! Tive a impressão de que todos os portugueses da cidade tinham combinado reunirem-se ali para ver o jogo. 

Ou antes, já a fazerem um velório, tal o triste silêncio daqueles olhos ainda pasmados no ecrán onde o ministro Ferro Rodrigues se consolava na glória dos jogadores que tinham representado Portugal. Mas quando Valentim Loureiro disse que de facto tinha sido penalti, um a um foram-se levantando e retirando em passos lentos e sempre mudos, como que pisando a medo a alcatifa que mais lhes abafava os movimentos da taciturna partida. 

A verdade, porém, é que muito pouca gente do Mindelo estranha que a França tivesse ficado para a final. Os mais entusiastas do futebol nunca acreditaram numa final com Portugal, lembrando não só 1966 como também mais recentemente o impressionante sucesso da equipa dos Camarões no Mundial. 

Há um momento em que é preciso quebrar a perna aos adventícios, dizem, o Terceiro Mundo, donde Portugal ainda não saiu, não pode aspirar a ganhar às grandes potências, já foi escândalo suficiente Portugal humilhar de forma brilhante tanto a Inglaterra como a Alemanha. De modo que se para ele perder era preciso fazer batota, paciência, vai-se para a batota, como diz Camões, outros valores de levantam. 

Aliás, isso mesmo ouvi eu esta manhã no lado de fora da entrada do cais acostável onde diariamente dezenas de estivadores se postam em grupos e em busca de um qualquer trabalho. É uma gente curiosa: passam essas longas horas, muitas de inútil espera, lendo jornais e discutindo os assuntos. Os que sabem ler ou entendem melhor explicam o conteúdo aos demais. Ainda há dias um deles, o Rui, veio pedir-me se eu poderia oferecer alguns dos meus livros «para a malta do Guetó». Justificou-se dizendo que escrevo de maneira tão fácil que todos eles entendem o que digo. Fiquei tão contente que ele levou todos os que quis. 

Parei o carro, e logo três deles aproximaram-se de mim a saber se precisava de homens para carregar algo. Mas ainda discutiam: Foi bola na mão e não mão na bola, dizia ainda um deles, o mais certo foi o árbitro ter sido comprado, não seria a primeira vez! Concordei: A mim também me pareceu bola na mão, acho que foi muito injusto. 

Enquanto esperava fui andando para os lados de um grupo mais desenvolvido onde um estivador arengava como que em comício: ...«porque antigamente o futebol era um desporto a sério, agora é apenas um negócio, a única cortesia que os jogadores ainda fazem uns aos outros é quando um adversário fica caído no relvado e deitam a bola fora para ele poder ser tratado. Porque, se não fosse assim, um jogador como toda a gente acha que é aquele tal Zidane, se ele fosse de facto um desportista como deveria ser, teria atirado para fora aquele penalti. Mas não, a única coisa que querem é ganhar.» 

Não pude deixar de sorrir dessa curiosa perspectiva, uma forma muito mais nobre de ver o desporto: se o juiz erra e manda marcar um falta, sobretudo se for um penalti, o jogador obedece, porém corrige o erro recusando com nobreza a beneficiar-se do castigo. A França ganhou sem honra, continuou o estivador, foi vergonhosa a forma envergonhada como aceitaram essa vitória. 

Bem, nem todos terão ficado envergonhados, meti-me na conversa, porque pelo menos vi o Zidane aos abraços aos colegas, como se de facto tivesse cometido um grande feito... 

Germano Almeida