Viu ontem o Vialli?» «Não. Deve ter passado quando eu não estava»

(Diálogo imaginário de Umberto Eco com um taxista, num artigo escrito durante o Mundial 1990)

A avaliar pela abundância de citações, comentários e mesmo piadas («adas… adas… adas», por exemplo), a morte de Umberto Eco causou na comunidade portuguesa residente nas redes sociais um impacto quase tão profundo como o dos pseudopenáltis sobre Jonas e Maxi Pereira. Infelizmente cheguei tarde à conversa e já não vou a tempo de evocar "o inesquecível autor de O Nome da Rosa" ou de desempoeirar uma ou duas citações do wikiquote para puxar o status. Mas vou a tempo de escrever o seguinte: alguns dos seus textos, mesmo escritos há três ou quatro décadas, são extremamente úteis para arejar o debate sobre futebol – e muito atuais no contexto do futebol português.

Entre os mil e um temas que abordou, o escritor (quase ia escrevendo intelectual, perdoem-me a grosseria) assumiu com gosto, em vários ensaios e crónicas, o papel de provocador antifutebol. Ou, de uma forma mais precisa, o de crítico violento – pelo exagero e pelo ridículo – do fanatismo associado ao futebol. Uma precisão exposta de forma transparente no título de um dos seus artigos mais conhecidos sobre o tema: «Odeio fanáticos, não o futebol», escreveu a propósito do Itália-90.

Não gosto do fanático porque tem uma estranha característica: não entende por que razão tu não o és e teima em falar contigo como se o fosses. (O fanatismo) é como a úlcera, ataca tanto o rico como o pobre. E o curioso é que criaturas tão convencidas de que todos os homens são iguais estão sempre dispostas a partir a cabeça ao adepto da província limítrofe. Este chauvinismo ecuménico surpreende-me.”

Muitos dos seus argumentos não eram novos, como é evidente. Pelo contrário: Eco assumia, com gosto e sentido de humor, a herança de velhos preconceitos, como forma de resistência política e intelectual ao discurso mediático sobre o desporto – e o futebol em particular. Em 1969, num artigo intitulado «A Tagarelice Desportiva», apontou a substituição crescente da prática do desporto pelo discurso em redor do desporto. Esse fenómeno, dizia, transformava o adepto num ser passivo, semelhante a um voyeur que se contenta em ver, a intervalos semanais, pares selecionados pagos para fazer sexo. E, claro, Eco atribuía a isso uma dimensão política.

O desporto é algo muito bonito. Pelo menos tão bonito como o sexo, a reflexão filosófica e o jogo da moedinha (…) Já o debate sobre o desporto – quero dizer, os programas desportivos, as conversas sobre desporto, a conversa sobre os jornalistas que escrevem sobre desporto – é o substituto mais fácil para o debate politico. (…) Para o adulto masculino é o equivalente às brincadeiras em que as meninas agem como mulheres crescidas: um jogo pedagógico que nos ensina a ocupar o lugar esperado.”

Como é evidente, estas provocações tinham uma origem autobiográfica, tal como o próprio Eco explicava, bem-humorado, num outro texto a propósito do Campeonato do Mundo de 1978 («O Mundial e as suas pompas»), publicado no livro «Viagem à Irrealidade Quotidiana».

Muitos leitores mal-intencionados (…) sustentarão a vulgar desconfiança de que eu não amo o futebol porque o futebol nunca me amou, dado que, desde a mais tenra infância, fiz parte daquele grupo de crianças que, a partir do momento em que chutam uma bola – assumindo que são capazes de chutá-la – de imediato a mandam para a própria baliza ou, na melhor das hipóteses, para os pés do adversário. Nenhuma desconfiança poderia ser tão claramente verdadeira.

Também por isso, não vale a pena cair no erro de levar as críticas de Eco demasiado à letra – um erro que, seguramente, ele próprio não cometeu. Sabemos por que razões gostamos de desporto - e de futebol em particular -  e muitas delas não encaixam no quadro de cegueira e fanatismo que o escritor lhe atribuiu ao longo dos tempos. Outras, sim, e é importante ter consciência disso. O simples facto de nos convidar a refletir sobre estes temas faz do "inesquecível autor de O Nome da Rosa" (olha, afinal ainda fui a tempo!) um provocador necessário para os tempos que correm.