Há duas frases que marcam decisivamente a campanha da seleção no Euro2016. A primeira foi dita por Fernando Santos, ainda o apuramento ia a meio, e repetida em momentos complicados, como um refrão a lembrar o essencial: «Vai ser muito difícil alguém ganhar-nos».

Aquilo que para muitos soou a bazófia, ou excesso de confiança, foi simplesmente o assumir, descomplexado e com todas as letras, de uma inversão de valores históricos. Portugal, a seleção que desde 1966 partia do conceito universal de «jogar bem» para tentar ganhar os seus jogos, ia desta vez começar o edifício pela capacidade de não os perder, anulando os pontos fortes adversários.

Mesmo com oscilações pelo meio – erros defensivos com Islândia e Hungria tiraram alguma credibilidade ao anúncio - 14 jogos oficiais sem derrota (e nove vitórias pela margem mínima) permitem agora tirar a frase da gaveta das profecias e transformá-la em promessa cumprida. Mais uma, a juntar à dos prazos de regresso.

A segunda frase chave foi dita por Cristiano Ronaldo no já célebre apelo com que convenceu João Moutinho a bater um dos penáltis contra a Polónia. Depois do estímulo positivo («anda bater, tu bates bem!») veio, quase como um sacrilégio, a frase que olhava o medo de frente, o chamava pelo nome e o desvalorizava: «Se perdermos, que se f…!».

A fórmula de Ronaldo também revelava um drástico corte com o passado, na atitude da equipa e dos jogadores perante o grande pano de fundo que até aqui dominava todas as presenças em fases finais desde os anos 80: o receio algo provinciano de não agradar, de não estar à altura das circunstâncias e de alguma forma precipitar o regresso ao terceiro escalão e a décadas de ausência dos grandes palcos.

Rapidamente adotada pelos utilizadores de redes sociais e transformada em hashtag (#qsf), a fórmula Ronaldo, dita naquele momento e naquele tom, só seria credível vinda de alguém com tantas fases finais (sete, no caso) nas pernas. Alguém que por entre tantas conquistas já se tinha cruzado na Seleção com quase todos os tipos de derrota possíveis, desde a agonia da final de 2004 às eliminações milimétricas de 2006 e 2012, até autênticos embaraços como os Mundiais de 2010 e 2014. 

Em todas essas campanhas, com ou sem razões para isso, a Seleção continuava a ser avaliada em função da herança do belo jogo, que teve expoente em 2000. Podia ficar acima ou abaixo das expetativas, mas era uma equipa da qual se esperava espectáculo e que recolhia a simpatia dos neutrais como recompensa.

A formulação de Fernando Santos e o #qsf de Ronaldo assinalam, cada um a seu tempo, o momento em que, na cabeça dos seus líderes – e, portanto, na cabeça da equipa – Portugal rejeitou a simpatia e o medo, e assim deixou de ser o convidado de honra que abrilhantava os serões, em Europeus e Mundiais, para se tornar o sócio de pleno direito, sem medo de perder regalias e com total liberdade para chatear os vizinhos. E se em 2016 houve seleção capaz de ser orgulhosamente chata para com os vizinhos, essa seleção foi a portuguesa.

No fundo, esta conquista inédita, tão assente no passado como na sua rejeição, assinala a transformação final, o ponto de chegada de um trajeto iniciado no final dos anos 80, ainda com Carlos Queiroz como primeiro rosto. Só que todos os pontos de chegada são pontos de partida para outro lugar. É este o caminho a seguir? Quase de certeza que não: a vitória de Portugal no Euro 2016 passou muito por esta mudança de atitude, mas também por um conjunto de circunstâncias – algumas delas francamente felizes – que é quase impossível repetir.

Além da inevitável renovação do grupo, que sempre acontece após as fases finais, muitas dessas circunstâncias chocam com o que é a cultura formadora de base, a identidade de jogo que começa a ser bebida nas idades mais baixas. E muitos dos conceitos postos em prática por esta seleção vencedora contradizem a lógica de um modelo coerente a ser aplicado em todas as seleções, numa altura em que os resultados na formação voltam a impressionar.

Mas ganhar o primeiro título internacional sénior é um pouco como perder uma espécie de virgindade: demasiado importante para se esperar que seja perfeito, nunca o é. Basta que seja suficientemente bom para haver uma outra vez. E outra. E depois outra. Sempre diferentes, sempre melhores. Citando Ronaldo, o resto #qsf.