É comum ouvir dizer que o maior problema clínico do futebol português é a miopia de quem manda. É outra forma de designar a incapacidade - quase geral – de ir além dos interesses mais próximos e imediatos e olhar, muitas vezes em conjunto, se necessário, para o quadro maior.

Um exemplo óbvio: a certeza de que os grandes dificilmente estarão dispostos a redistribuir a respetiva fatia do bolo, nas receitas (televisivas e não só) geradas em Portugal. Mesmo com a certeza partilhada de que o sufoco progressivo dos clubes pequenos e médios faz diminuir o valor competitivo da Liga – e, a longo prazo, o tamanho do bolo todo.

Outro exemplo óbvio: o jogo do sério entre Benfica e FC Porto, a ver quem pisca primeiro – ou quem é o primeiro a render-se à evidência de que o modelo de gestão assente em duas vendas altas por ano – está cada vez mais posto em causa pela conjuntura internacional em mudança.

Normalmente, usam-se os bons exemplos de lá de fora para acentuar as diferenças de visão, esquecendo quase sempre que esses bons exemplos foram desencadeados por pressões exteriores.

A Premier League? Nasceu do cruzamento entre três tragédias, Bradford, Heysel e Hillsborough, e de um fenómeno novo, chamado televisão digital, num caldo de cultura proporcionado pela era Thatcher. Foi isso que forçou os clubes a olharem para o quadro todo, pondo de lado as rivalidades na definição de regras básicas de concorrência eficaz.

A reestruturação do futebol alemão na última década, até ao Mundial do Brasil? Nasceu da certeza de que era preciso recriar de raiz os modelos de formação e organização dos clubes. depois das humilhações a que a Mannschaft foi sujeita nos Europeus de 2000 e 2004. Mas na Alemanha  a seleção é vista como o topo da pirâmide, ao contrário do que acontece por cá.

Num caso e noutro, houve dois fatores a funcionar para esses alinhamentos estratégicos: Ligas fortes, com estruturas profissionais fortes e objetivos comuns bem definidos; e orientações estratégicas externas – através de legislação governamental e/ou diretrizes federativas. O que sugere a ideia de que, seja lá fora ou cá dentro, há momentos em que os problemas de visão são comuns. A forma de atacá-los é que, historicamente, tem sido diferente.

A este respeito, a minha teoria - que, modéstia à parte, é tão idiota como qualquer outra – junta um pequeno anexo a este exercício de optometrista. Aí vai: talvez a miopia do futebol português nasça da vista cansada de grande parte dos seus adeptos – leia-se, dos adeptos dos três grandes.

A vista cansada, como é sabido traduz-se na dificuldade em focar, devido à sobrecarga dos músculos óticos quando se olha demasiado tempo para coisas próximas. É saturar os olhos com pormenores, desabituando-os de olhar para o quadro maior. Nos ecrãs de TV, por exemplo. Já repararam que o tempo médio dedicado a repetições de lances, nos diretos dos jogos domésticos, é brutalmente superior ao dos jogos da Premier League ou da Liga alemã – já para não falar das transmissões das provas da UEFA?

Não me parece que seja defeito dos realizadores portugueses, muito pelo contrário. É, antes, o reflexo de uma cultura desportiva que, desde a formação, se fixa no pormenor e se desabitua de olhar para longe. É, também, a forma mais natural de encobrir a falta de dinâmica e fluidez de grande parte dos jogos domésticos. E, por fim, o alimento pré-fabricado do tipo de discussão mais comum em redor do futebol português nos últimos anos: consiste em olhar dez vezes para uma repetição, e concluir, a partir daí, que toda a maldade do mundo pode ser exposta e revelada com a dose certa de paciência e o número certo de câmaras.

Assim vamos cansando a vista. Assim nos tornamos míopes. E não, este texto não é apenas sobre futebol.