Quando um dedo aponta a lua, o tolo olha para o dedo (provérbio chinês)

Em 1949, o sociólogo Robert Merton criou uma expressão – profecia autorrealizável, self-fulfillingy prophecy no original – para definir o tipo de comportamento que, ao antecipar um dado acontecimento, cria as condições para que ele se torne real. O caso mais clássico é o de uma corrida dos depositantes ao seu banco, por pânico de uma eventual bancarrota. Mas a designação aplica-se também, por exemplo, ao público que vaia por antecipação um seu jogador, por achá-lo fraco – aumentando assim a sua intranquilidade e, por consequência, as probabilidades de erro (César Peixoto na Luz, anyone?).

Lembrei-me do conceito ao ver as reações à forma como, na sexta-feira, o arrogante chegou a um dos maiores clubes do mundo. E como, um dia depois, o vaidoso se tornou o primeiro português com três Taças dos Campeões no currículo. Quem se habituou a ver neles apenas isso –arrogância e vaidade – não precisou de muito tempo para ver confirmadas as profecias: acaso não disse Mourinho logo de caras, que «os clubes gigantes são para os grandes treinadores?». E acaso, depois de uma das exibições mais apagadas da carreira, não festejou desabridamente Cristiano Ronaldo o seu penalti decisivo, procurando as câmaras para exibir o corpo trabalhado ao milímetro (espelho meu, espelho meu)?

Pormenor nada irrelevante para estas coisas: Mourinho, grande treinador, tinha acabado de ser oficializado num clube gigante. E Ronaldo, com o único pontapé inspirado em mais de 120 minutos, tinha efetivamente garantido o troféu mais importante da temporada de clubes. Pela sua forma de ser, Mourinho e Ronaldo são e serão, por mais alguns anos, garantia de que as profecias a seu respeito vão continuar a autorrealizar-se. Tanto as bajuladoras, que trocam toda a capacidade crítica pelo vislumbre do génio a cada espirro; como as depreciativas, que vivem de lembrar, a cada pretexto, rótulos que os acompanham há mais de dez anos.

Ora o debate, nesta altura das respetivas carreiras, parece-me francamente desinteressante, cristalizado em trincheiras que não comunicam. Sim (bocejo), ambos têm egos enormes, e daí? Apontem-me uma estrela que não o tenha e eu mostro-vos um excelente trabalho de spin à sua volta. Sim, ambos são absurdamente bons no que fazem, o que não pode servir para lhes garantir imunidade à crítica - nem estatuto vitalício de «o melhor do mundo» como se fosse apelido.

Explicar tudo com rótulos, deixando para segundo plano os enormes tributos à superação e à obsessão pelo trabalho que as carreiras de um e outro representam é, no mínimo, preguiçoso. Mais do que isso, parece-me arrogante e superficial, tal como criticar Jorge Jesus pela forma como diz as coisas, mais do que pela substância criticável do que diz. Mourinho fê-lo, em tempos, numa entrevista ao Maisfutebol, e nesse momento coincidiu com o rótulo: foi arrogante e superficial. Tal como, na final de há dois anos, Cristiano Ronaldo foi fútil e exibicionista, na forma de festejar um penálti sem influência num jogo que já estava arrumado.

Que Mourinho e Ronaldo sabem ser irritantes, é indiscutível. Que cometem erros, também. A maior ou menor frequência com que os cometem depende da trincheira que o observador ocupa no debate. Mas alguns dos maiores erros em que já incorreram - Ronaldo nos amuos mal explicados, Mourinho na conflitualidade sem tréguas que o devorou em Madrid - surgem quando eles próprios, acreditando na lenda a seu respeito, trocam prioridades entre o essencial (o trabalho, o perfeccionismo, a ambição) e o acessório (os mind games, a permanente exibição de força). Esse é o erro de perspetiva que boa parte do público comete diariamente a seu respeito. Desvalorizar o essencial das suas histórias e fixar atenções no rótulo é, além de mesquinho, um enorme desperdício. Um pouco como ficar a comentar a unha mal cortada no dedo que nos apontou a lua - uma lua cuja existência, até aí, nem sequer conhecíamos.