«Sei que se Tozé falhasse iam levantar uma série de suspeições. Mas já sabemos que vivemos assim»
José Couceiro, após o Estoril-FC Porto

Acompanhar um jogo da Liga portuguesa usando as redes sociais como complemento à TV pode ser uma experiência enriquecedora. Há, felizmente, muita gente atenta e apaixonada a escrever bem, e com sentido, sobre futebol. E isso faz-nos ver mais coisas do que os nossos olhos alcançam à primeira – logo, faz de nós melhores adeptos ou comentadores ou, simplesmente, pessoas mais bem informadas.

Mas pode, também, para os mais incautos, ser uma experiência deprimente. Especialmente se não formos capazes de filtrar todo o azedume, má-fé e cegueira nos mais variados tons, que põem as pessoas mais inteligentes a escrever – e a pensar – como o mais ressabiado dos burgessos.

Num domingo como este, com os três históricos a jogarem de seguida, o filtro tem de ser especialmente exigente. Para cada comentário lúcido, há dezenas que fazem vir ao de cima a implacável contabilidade de injustiças e escândalos passados, com que o adepto português médio gosta de andar armado. E o futebol fica assim transformado num pretexto – relativamente barato, mas não tanto como isso - para descarregar frustrações, um espectáculo condicionado desde o primeiro instante por esse arsenal de memórias, injustiças e conspirações.

À partida, nada contra. No fim de contas, há mais de cem anos que se lhe identificou essa utilidade e sempre é melhor escrever bojardas a seu pretexto do que usar essa energia para espancar velhinhas. O problema é que a discussão, centrando-se nos clubes grandes e no tamanho das respetivas fatias do bolo, torna irrelevante o que se passa em campo. O jogo transforma-se num ruidoso e estéril exercício de esgrima opinativo: a agilidade dos ataques e contra-ataques importa, aquilo que acontece lá dentro, nem por isso. E nessa visão de um mundo que conspira contra nós há cada vez mais espaço para a paranoia.

Neste domingo, os lances duvidosos do Nacional-Benfica e do Sporting-Paços serviram, antes do mais, para prolongar as discussões de geometria aplicada que já vinham da última semana. Mais uma vez, nada de grave, já que nestas coisas as certezas são tão relativas como linhas virtuais de fora de jogo. À exceção, lá está, de a esmagadora maioria dos argumentos partirem do pressuposto de que todos os erros e decisões duvidosas resultam da má-fé dos intervenientes e são programados com antecedência.

E é isso que nos traz para o momento em que Tozé, jogador do FC Porto cedido ao Estoril, depois de ter conquistado uma grande penalidade a dez minutos do fim, decidiu pegar na bola. Aceitando o desafio de tentar convertê-la diante da sua equipa de sempre, à qual continua ligado, o internacional sub-21 não se limitou a enfrentar pressão natural de um momento decisivo num jogo grande: enfrentou a paranoia coletiva de milhares de adeptos de futebol que, até ao momento em que a bola transpôs a linha, não tinham dúvida sobre o desfecho programado daquele penalti.

É esta facilidade em julgar tudo e todos pelos padrões mais baixos de honestidade e seriedade que faz do futebol português, muitas vezes, um lugar prejudicial à saúde. A decisão de Tozé, bem apoiada na competência com que a traduziu e na confiança do seu treinador, faz-nos bem à cabeça, à nossa lucidez coletiva de espectadores. Como escrevia a poetisa May Sarton, em tempos, «às vezes é preciso pensar como um herói para agir apenas como um ser humano decente». Envenenados que estamos pelo facciosismo, e pela vida que nos acontece lá fora, no intervalo dos jogos, talvez precisemos menos de heróis, e mais de seres humanos decentes. A começar por nós mesmos, quando opinamos sobre futebol.