Há jogadores mais fáceis de definir por aquilo que não são. João Moutinho é, talvez, um dos exemplos mais consumados dessa espécie. Enumeremos tudo aquilo que ele não é: não é especialmente forte, nem rápido, nem alto. Não é um recuperador particularmente agressivo. Também não é um driblador e definitivamente, não é – oh, Deus, não é de todo! - um rematador consumado, como o demonstram todas as tentativas fora do alvo (duas por jogo, em média) à entrada da área. Daí o registo de carreira, francamente modesto para um médio, de um golo a cada onze jogos.

Podemos acrescentar a isto a dimensão afetiva: devido às especificidades clubísticas do futebol português é fácil chegar à conclusão de que Moutinho também não é, e dificilmente será, um jogador particularmente amado pelos adeptos. Não o é pelos sportinguistas, que o abjuraram no verão de 2010. Não o é pelos benfiquistas, que o viram representar dois rivais distintos durante oito épocas consecutivas. E, apesar dos títulos conquistados, também não será pelos portistas, pela forma fria, racional e premeditada como, ao fim de três anos, apontou um novo rumo de carreira à Côte D'Azur. Sendo os adeptos do Mónaco uma entidade virtual, sobram os adeptos de outros clubes, os ocasionais, ou apenas adeptos de seleção. Mas esses, com raras exceções, dedicam os seus afetos intermitentes a jogadores mais exuberantes. Ou mais robustos. Ou com mais golo. Ou mais uma dessas muitas coisas que João Moutinho não é.

Mesmo os adeptos ateus, que amam, adoram ou desprezam em função de valores que não dependem especialmente de cores e camisolas, não são atreitos a amar jogadores como Moutinho. Porque a paixão lhes pede qualquer coisa de inatingível, ou de mágico, que normalmente é dado pelos Ronaldos, Messis, ou outros membros da linhagem de génios. E Moutinho não é génio, porque este alimenta-se de um impulso irracional, aventureiro, provocador, que está ausente da forma como ele concebe o futebol.



Mas tudo se torna mais claro com exibições como a que assinou em Solna, nos três golos de Ronaldo à Suécia. Ou no Emirates, nos três golos do Mónaco ao Arsenal. Ou na Luz, este domingo, a pegar na seleção pelos colarinhos, primeiro, e depois a tirá-la de problemas, com aquela parábola que inventou um território inexplorado, entre o seu pé direito e o pé esquerdo de Coentrão.

Vejam o lance com atenção, está lá tudo. Em especial a capacidade de transformar as contrariedades em algo novo: o primeiro toque de Moutinho, na receção ao passe de Ronaldo, é imperfeito e deixa a bola ficar para trás. Isto obriga-o a travar o movimento e a resolver - pela inteligência e pela parábola - aquilo que não conseguiria resolver pelo génio ou pela velocidade. Tudo aquilo que nunca será é exatamente o que faz dele melhor jogador.

Moutinho, quando joga assim, é  a prova de que não é preciso ser-se génio para fazer arte. E não é para ser amado: é para ser admirado, com a admiração sem reservas que nos suscitam os exemplos de competência, superação e inteligência superior. Há mais de 500 anos, Leonardo Da Vinci, falando sobre o que pintava, explicava que « pittura é cosa mentale».  Ver Moutinho jogar assim - como ver Xavi, ou Modric, ou Xabi Alonso, e outros que, tal como ele não são uma série de coisas - é perceber que o futebol também pode ser isso. Uma coisa mental, que os melhores de entre os não-génios jogam, em primeiro lugar, com a lucidez e o raciocínio. Como a pintura. Ou qualquer outra forma de arte, tenha bola ou não.

Despidos todos os preconceitos, sobra-nos enfim a evidência do que é Moutinho: um artista, que se exprime pelo pensamento. Uma ideia com pernas, contra tudo aquilo que nunca será.