Ficou famosa a portaria 69035 publicada pela Câmara Municipal de Lisboa, corria o ano de 1953, que definia as regras de penalização para atos atentatórios à decência em locais públicos em conformidade com o estipulado pelo Estado Novo.

Determinava-se à Polícia e Guarda Florestais a «permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de atos que atentem contra a moral e os bons costumes».

«Estabelece-se e determina-se que o art.º 48.º tenha o cumprimento seguinte:

1.º Mão na mão, 2$50; 2.º Mão naquilo, 15$00; 3.º Aquilo na mão, 30$00…»

O rol de penalizações seguia da multa leve à mais pesada, acrescida de prisão e obrigatoriedade de ser fotografado, além de ficar com ficha na polícia.

A parte que para aqui interessa é a da «mão naquilo» e a de «aquilo na mão», que no fundo é aquilo em que se transformou a conversa sobre futebol em Portugal.

É agora que este artigo embala para uma discussão sobre arbitragem a somar às horas de televisão e às páginas de jornal sobre o tema?

Não, não é. Este artigo é sobre honestidade intelectual e serve apenas para sublinhar as incongruências que fui apontando ao longo dos tempos a responsáveis, adeptos, comentadores e até ex-árbitros (também os há) afetos aos três grandes do futebol nacional.

Resumindo: os sportinguistas que esta semana reclamam duas grandes penalidades a seu favor no dérbi da Luz, por mão na bola de Nelson Semedo e Pizzi na área do Benfica, são sensivelmente os mesmos que justificaram com bola na mão, sublinhando a legalidade, os lances dos golos de Gelson Martins e Bryan Ruiz no clássico de Alvalade frente ao FC Porto. Os benfiquistas que explicam a teoria da bola na mão de Nelson Semedo e Pizzi, justificando a decisão do árbitro, são sensivelmente os mesmos que no clássico do Dragão sustentavam à da mão na bola do defesa-central Felipe no golo anulado ao FC Porto, voltando (pois claro) à tese da bola na mão no milissegundo imediatamente anterior do mesmo lance quando a dúvida visava o gesto de Mitroglou na área encarnada. E por aí fora…

Quem ganha, prefere sempre falar de futebol. Quem perde, prefere, com razões de queixa ou não, criticar a arbitragem. No entanto, se quem ganha começar a perder, volta, por sua vez, a ganhar súbito interesse no tema da arbitragem, num círculo vicioso sem limites de bom senso.  

A discussão segue com um critério ajustável aos interesses de circunstância, com cada um a pedir penalizações enquanto cai no ridículo ou a declarar-se amante do jogo limpo enquanto viola as regras mais básicas da seriedade.

Uns e outros atentando à vez contra a moral e os bons costumes.

Tragam o vídeo-árbitro, auxiliares de baliza e o que mais puderem, mas defina-se um critério claro – o da deliberação, por exemplo, que é o que está na lei nestes casos de bola na mão.

A portaria 69035 tinha o seu quê de idiota, mas também a vantagem enorme da clarificação. Antigamente, «mão naquilo» dava sempre multa de 15 escudos. Hoje em dia, mão na bola pode dar penálti ou invalidar um golo. Ou então o contrário, consoante a sensibilidade de cada um.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.