Vigo, 18h30, uma sexta-feira qualquer.

A bola rola sobre o chão e salta sobre as mesas das esplanadas, tabela nos pés das senhoras de idade que vão a passar, contorna o palhaço que faz bolas de sabão gigantes, depois de encher balões com formas que vão desde cães a espadas, até encontrar a baliza improvisada: uma parede branca de um edifício no casco vello que tem escrito qualquer coisa como «No a los recortes en la Sanidad Pública».

Na pedonal Plaza de la Constitución, jogar à bola tem prioridade sobre tudo o resto e ninguém se importa com isso.

Mais do que condescendência, há ali uma satisfação coletiva que perpassa ao ver miúdos a brincar na rua, no coração da cidade. Em comunhão com o momento, guardo a minha alegria particular por ver que, entre as crianças que correm atrás de meia dúzia de bolas que seguem em direções opostas ou convergentes, lá anda o meu filho Guilherme, sob o olhar terno da mãe, com a mesma atração comum à de qualquer outra criança de quatro anos.

A coisa mais natural do mundo parece naquele momento um cenário irreal. Mudar ligeiramente de geografia faz-me recuar bruscamente no tempo e perguntar: por onde andam as crianças que no Porto da minha infância jogavam à bola na rua?

A explicação que me ocorre é de que nos nossos dias, espaço e tempo para brincar são um bem precioso. Há, porém, cada vez mais crianças-agenda: um menino mal articula frases na língua nativa e já segue do Inglês para a aula de Religião e Moral do colégio, e daí para o Karaté – Ballet é uma opção mais provável no caso das meninas.

O menino ainda joga à bola? Pois claro que joga! Mas numa escolinha franchisada de um clube grande, a tentar encaixar-se num horário e conquistar o seu palmo de piso sintético entre os 800 miúdos lá inscritos.

«Está ali um Cristiano em potência», pensará o papá, ciente de que o treinador já deve ter reparado nele. Se não reparou, há-de reparar, que mais dia, menos dia o papá acabará por ir lá cobrar-lhe a devida atenção ao craque. Afinal de contas, o papá comprou o kit com o equipamento por quase cem euros, sentiu-se orgulhoso do investimento, que vai render quando puder gabar-se dele a pseudo-amigos com quem leva a vida em competição.

O menino tem mesmo de ser um Cristiano em potência. Por isso é que ainda mal se segura nas pernas e já tem um emblema centenário ao peito. Não seria em vão que os progenitores decidiriam encaixar o futebol na lista de afazeres entre o Inglês, a Religião e Moral, o Karaté e o que entretanto surgir para lhe preencher a agenda.

Nos dias que correm, jogar à bola na rua é um luxo, brincar com tempo e sem preocupações é uma bênção, correr atrás de uma bola só por correr é uma alegria. Quem puder, que aproveite.

[Por esta hora, o meu filho já saiu da escola e tenho de o ir buscar a casa da avó. Ontem, veio com um galo para casa. Há dias em que aparece com os joelhos esmurrados. Aposto que hoje vou como sempre encontrá-lo a jogar à bola na rua com os vizinhos, no mesmo sítio onde eu jogava há trinta anos.]

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.