De cada vez que Quaresma «parte a louça» em campo, um daqueles horríveis sapos em cerâmica estala na montra de um café ou de uma loja. Cada momento artístico dele é um pontapé (ou cabeçada) no âmago da intolerância.

Nessas alturas, imagino um preconceituoso militante encostado ao balcão do café a interromper um discurso que reza qualquer coisa como «Ciganos? É gente que não gosta de trabalhar» ou «Brasileiros? Era mandar tudo de volta para a terra deles» e vociferar para a televisão «Mete o Quaresma!» ou «Que jogão do Pepe!», antes de sentenciar: «Eu não disse? Golo! Grande Quaresma!» Tal como o imagino nos festejos a partir a figura do batráquio que só está lá para, por via da superstição, excluir uma etnia inteira da clientela.

O futebol às vezes é mais do que um jogo e esta que, arrisco, é a mais representativa seleção portuguesa da história fará qualquer xenófobo engolir um sapo.

Neste Portugal do Euro 2016, que tem um traço ítalo-grego no seu jogo, há uma nação inteira que pode ver-se ao espelho. Loiros, morenos e mulatos. Veteranos e outros tão novos que podiam ser seus filhos. Todos juntos na mesma equipa.

Portugal é um miúdo da Musgueira a pegar no meio-campo como quem joga no bairro e dois centrais de sangue brasileiro nascidos um de cada lado do Atlântico. É um Carvalho de Amarante e outro com raízes em Angola, onde só crescem embondeiros, e é acrescentar ao contingente das ex-colónias talentos da Guiné e de Cabo Verde.

Portugal cumpre-se ao ver regressados à pátria emigrantes que trocaram França ou Alemanha pelo orgulho supremo de envergar a camisola do país dos seus pais, que tal como tantos milhares podem ter atravessado a fronteira a salto ou talvez viajado horas a fio no Sud Express até desembarcarem na parisiense Gare d’ Austerlitz, como cantava José Cid em «Domingo em Bidonville». Por falar em Cid, Portugal é ter nas fileiras um transmontano que sorri com todos os dentes (mesmo que só veja a baliza do banco de suplentes), mais um minhoto e um algarvio. E até um açoriano mulato (haverá menor minoria?) ou um madeirense que é de todo o mundo.

Na altura em que a xenofobia irrompe pelo discurso de vários líderes políticos da Europa é significativo que neste Euro Portugal uma quase perfeita seleção da sua diversidade, no mesmo solo gaulês que em 1998 viu a primeira seleção multicultural da história levar França ao topo do mundo do futebol.

Quando leio ou ouço teorias sobre «Portugal para os portugueses», sorrio. De puro-sangue lusitano só conheço os cavalos. Para lá do seu retângulo, esta nação é verdadeiramente grande sobretudo pela miscigenação que inventou há séculos e pela diáspora que cultiva há décadas. Esse legado é a bandeira, sem pagodes, que esta seleção ajuda a empunhar. Essas são as mais autênticas cores de Portugal.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.