Encontrar uma atenuante para o gesto de Ricardo Carvalho ou assumir qualquer postura que não seja o inequívoco desejo de irradiação é tarefa hercúlea e aparentemente despropositada. Afinal, o defesa cometeu um 'crime de lesa-pátria', uma das maiores ofensas imagináveis: virou as costas à seleção nacional sem aviso prévio.
Os factos remontam a 31 de agosto de 2011 e Ricardo Carvalho foi suspenso por um ano, como o próprio confirmou recentemente. A pena efetiva, por outro lado, prolongou-se até outubro de 2014.
Fica desde já uma conclusão: o seu regresso aos 36 anos parece uma injustificada tentativa de compensação, numa altura em que o povo suspirava pela renovação do grupo. Essa, porém, é outra questão.
O que me leva a procurar compreender e desculpar Ricardo Carvalho é o contato diário com um futebol em que jogadores não têm voz. É uma classe oprimida, votada a ocasionais aparições públicas para debitar lugares-comuns.
Numa altura em que Portugal sufoca com injustiças sociais e económicas, não é lógico aplaudir o trabalhador que vai para a rua contestar e, em nítido contraste, demonstrar incapacidade para perceber um profissional de futebol que ousa fazer o mesmo.
Ricardo Carvalho ultrapassou o limite, claramente. Mas, por contraditório que possa parecer, descortinei ali um assomo de nobreza no gesto. Tendo Paulo Bento a legitimidade para escolher o seu onze – isto não pretende ser um julgamento sumário ao antigo selecionador -, a vitalidade de qualquer estrutura ou grupo depende em grande escala da capacidade crítica de todos os seus integrantes.
Há uma diferença tremenda entre o elementar direito ao contraditório e a anarquia total. Porém, os clubes de futebol, as sociedades desportivas e as seleções nacionais trilharam um caminho perigoso em busca de uma utópica resistência a todos os fatores de perturbação, internos ou externos.
Ao longo da última década, a lógica propagou-se e deixou os verdadeiros protagonistas, os jogadores, com deplorável receio de um esboço de crítica, de uma palavra fora do sítio, o pavor a algo que seja encarado como insatisfação. Nesse sentido, o cenário não é muito diferente daquele com que nos deparamos em várias áreas da sociedade portuguesa.
Ricardo Carvalho resumiu a questão em poucas frases, numa entrevista recente ao Expresso:
«O problema é que muitas vezes não podemos responder aquilo que estamos a pensar. Esse é que é o problema! Tens de evitar certas respostas porque podem magoar este, aquele, o grupo, o treinador. Nunca conseguimos mostrar o que verdadeiramente somos, andamos sempre a falar em círculos e dizemos 'há que levantar a cabeça'. E pronto.»
Parece-lhe familiar, caro leitor? É o que ouve em quase todas as flash interviews ou zonas mistas de estádios portugueses, semana após semana. Na vitória, no empate ou na derrota. Valorizar o coletivo, desvalorizar o resultado final e as questões individuais, louvar o trabalho desenvolvido. Em círculos.
Se Ricardo Carvalho, aqui citado como mero exemplo de um jogador profissional de futebol – com desempenho e comportamento exemplar ao longo de largos anos –, tivesse liberdade para reclamar o espaço que julgava merecer não chegaria a um ponto de ruptura como chegou.
Por outro lado, se os jogadores tivessem realmente voz em Portugal, seria possível anunciar de véspera (ou até evitar) algumas catástrofes. O Mundial do Brasil...para a história fica apenas o reconhecimento de uma incompetência momentânea e global da estrutura. Já passou.
Resumindo: o que Ricardo Carvalho fez justificou a punição exemplar, embora me tenha custado mais a ausência de um pedido formal de desculpas. Ainda assim, descortinei ali o saudável direito ao contraditório, o grito de revolta de uma massa crítica essencial mas silenciada ao longo dos últimos anos. Não só na seleção, não só nos clubes. Em toda a sociedade.
Entre Linhas é um espaço de opinião com origem em declarações de treinadores, jogadores e restantes agentes desportivos. Autoria de Vítor Hugo Alvarenga, jornalista do Maisfutebol (valvarenga@mediacapital.pt)