Milhares de pessoas, luzes e gente como nunca havia visto... Grande festa, sim senhor. Faz-me lembrar grandes manifestações nos tempos da Primeira República.

O Marquês de Pombal é dos meus sítios favoritos de Lisboa.

Só não percebo bem porque é que nesta festa há tanta gente a falar num tal de Jesus.

Ai trocou o Sport Lisboa e Benfica pelo Sporting? Não me diga… Eu também!

Chamam-lhe mestre da tática? Olhe, eu era é mestre da escultura.

Desculpe lá. Nem me apresentei. Não sou Jesus, mas sou Santos. Francisco dos Santos. Não sou deste tempo. Nasci em 1878 – e faleci em 1930, mas não faça grande alarido.

Mas, dizia eu: sou benfiquista e sportinguista.

É possível, pois!

Eu, o António Couto e outros miúdos casapianos ajudámos a fundar e fizemos parte da primeira equipa de futebol do Sport Lisboa, em 1904, dois anos antes da fusão com o Grupo Sport Benfica.

Quatro anos mais tarde, estávamos os dois a jogar no Sporting com o Francisco Stromp, numa altura em que o Visconde de Alvalade ainda era presidente.

Eram os primeiros anos do campeonato daqui da região e ainda ajudei a fundar a Associação de Futebol de Lisboa, em 1910, um ano antes de deixar de jogar.

Fui dos primeiros jogadores a mudar-me para o rival. E também o primeiro português a jogar no estrangeiro. Não acredita?

Depois de terminar o curso de Belas Artes, fui para Paris, frequentei o atelier do meu mentor Charles Verlet, casei-me com a Nadine, uma francesa que é a mãe do meu filho, e juntos fomos para Roma.

Mas sabe que isto de ser artista não dava para sustentar a família. Tive de me fazer à vida e arranjar uns biscates: dar aulas de francês, ser futebolista da Lázio…

Sim, fui capitão e joguei o primeiro dérbi capitolino frente à Roma. 19 de janeiro de 1908. A “Gazzetta dello Sport” do dia seguinte a considerou-me o melhor em campo. «Franzino e habilidoso… Em evidência esteve o veterano Dos Santos, que com os seus 55 quilos foi, de forma impressionante, dos melhores em campo...» Não sei onde ficou guardado esse recorte de jornal, mas pode acreditar em mim.

Isso antes de voltar a Portugal e dedicar-me primeiro ao futebol no Sporting e depois em definitivo à escultura.

Aí sim, ganhei bom dinheiro e tornei-me num artista famoso.

Ganhei o concurso para fazer a escultura do busto da república, sabia? E as esculturas «Crepúsculo» e «Salomé», que hoje estão expostas no Museu do Chiado, são de minha autoria.

Mas, claro, já sei que os adeptos devem ainda hoje falar de mim e do António Couto por esta magnífica estátua do Marquês, com a mão no dorso do leão, que pousa o olhar sobre Lisboa.

Ironias do destino. Quem diria que dois ex-jogadores de Benfica e Sporting iam construir este ex-líbris onde um mar de gente se concentra para celebrar os títulos?

Os adeptos que debatem futebol horas a fio, que têm tão boa memória sobre cada lance de arbitragem ou sobre as discussões entre dirigentes, que sabem ao detalhe o percurso do mais desconhecido miúdo da equipa B, conhecem bem a história do seu clube, certo?

Eles sabem quem eu sou, não sabem?

Ah, estava a ver que não…

Boa noite. Nem lhe cheguei a perguntar-lhe o nome. Mas tenho mesmo de ir embora, que já se faz tarde.

Até sempre!

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.