Confesso: preparava-me para fazer deste texto um simples exercício de nostalgia, lamentando que dos 27 jogadores utilizados no Clássico espanhol apenas um - Xabi Alonso – jogasse com botas pretas. Afinal, eu venho de um tempo em que as chuteiras brancas de Marco Simone, na final da Liga dos Campeões, em 1995, ainda confundiam o narrador da televisão portuguesa. «É estranho que tenha optado por jogar de ténis um encontro tão importante», indignava-se então. Nessa altura estávamos – ele e eu - bem longe de imaginar a enxurrada de tons de fúchsia, cérise e lima, com nuances de lavanda ou rosa pastel, que alastraria pelos relvados mundiais nos anos seguintes.

Ao centro, as botas brancas de Marco Simone, no princípio de tudo

Se ainda não fui suficientemente claro passo a assumi-lo com todas as letras: sim, até ao Clásico desta noite, considerava o advento das botas multicoloridas um disparatado simulacro de modernidade. Na linha das águas com sabores, das unhas de gel ou dos polícias em segways. E pensava aproveitar o pretexto para destacar a sobriedade, no jogo e no calçado, do médio a quem Ancelotti chamou «El Professor»: uma espécie de resistente do tempo em que só pelo toque de bola podíamos distinguir os pés, sublimes e plebeus, uniformizados pelo negro. As botas negras resistem e recomendam-se, concluiria, otimista.

Mas, depois, a meio da segunda parte, veio o plano aproximado dos pés de Iniesta (calçados em vermelhão? terracota? coral-fluorescente?) a voar baixinho por entre pernas brancas, com a bola presa ao pé numa faixa de velcro, e percebi que aquele drible curto me levava também o tema para o outro lado do campo. 

Tive a confirmação disso mesmo quando, uns minutos mais à frente, as mesmas chuteiras (laranja Portland? cor de dióspiro? salmão?) se insinuaram entre Carvajal e Xabi Alonso. O derrube de Iniesta em plena área, pelas botas pretas de «El Professor», não se limitou a decidir o clássico: fez-me perceber também que por vezes a nostalgia nos transforma em meros chuteiras de elástico. Chuteiras negras, claro: relíquias de um passado longínquo, condenadas ao abalroamento pelo tempo. Como um incauto transeunte no caminho de um polícia de segway.