«O general não prestou muita atenção à habilidade da resposta, porque foi abalado pela revelação deslumbrante de que a louca corrida entre os seus males e os seus sonhos chegava naquele instante à meta. O resto eram as trevas.
- Raios – suspirou. - Como vou sair deste labirinto?!»
(Gabriel Garcia Marquez, «O General no seu Labirinto»)

«Cruijff é um génio, não há quem saiba mais de futebol que ele. O problema é que já não tem com quem discutir o que criou. Está tão à frente que vive há demasiado tempo num mundo só dele, como os loucos.» Estávamos em 1995 e o Ferran, um amigo catalão, fanático pelo Barcelona e por Cruijff, explicava-me assim o caos em que a sua equipa tinha mergulhado, depois do desfazer do dream team.

Na altura achei o diagnóstico exagerado, embora os meses e anos seguintes parecessem dar-lhe razão. Cruijff deixou o Barcelona em abril de 1996, em guerra com o presidente Nuñez, e abrindo um cisma ideológico entre cruijffistas e nuñistas, que se mantém até hoje. Por incrível que pareça, tinha apenas 49 anos mas nunca mais voltou a ser treinador – embora tenha permanecido um dos gurus mais influentes do futebol mundial, Guardiola que o diga.

De vez em quando, no intervalo dos negócios, Cruijff digna-se a deixar «o mundo só dele» e a assumir o papel de oráculo. E aí, continua a ser capaz de alimentar paixões inflamadas e ódios de estimação. E também de proporcionar momentos luminosos, como esta dissertação improvisada sobre um 4x4x2 losango, que acaba transformado em 3x4x3:



Com carradas de razão, mas sem batalhas para travar, Cruijff não voltou a vestir o uniforme. Encurralado pelo peso do percurso, das conquistas e das batalhas perdidas e ganhas, transformou-se num sábio e ficou para sempre no seu labirinto. Lembrei-me dele, e da conversa com Ferran, ao reler o Simon Bolívar envelhecido de García Marquez, metáfora perfeita para o acerto de contas do tempo com as personagens que a História vai tornando demasiado grandes.

Voltei a lembrar-me deles nas últimas semanas, ao reler, na biografia de Guardiola, a descrição do labirinto em que se tinham transformado os seus últimos meses no Barcelona – e os indícios de novos labirintos que se desenham em Munique. Mas lembrei-me, acima de tudo, ao ver José Mourinho, de frente de batalha em frente de batalha, na gestão difícil da sua primeira época completa sem qualquer troféu – que se segue a uma outra, ainda mais amarga e desgastante, no Real Madrid.

Mourinho tem agora 51 anos, mais dois do que tinha Cruijff quando se fechou no labirinto e deitou fora a chave. Mas, ao contrário do holandês, a sua ambição não tem geografia definida pelo eixo Barcelona-Amesterdão, nem foi antecedida por duas décadas no topo do mundo como jogador. Também por isso, o melhor treinador português de todos os tempos deverá estar ainda longe de ser um homem saciado.

Porém, parece estar nesse difícil ponto de equilíbrio das personagens sobre expostas. Um ponto a partir do qual, por desgaste do público a que se destina o discurso, as virtudes se tornam problemas e os traços de personalidade podem deslizar para a caricatura. E, nesse particular, o risco maior talvez seja o de alimentar demasiado a própria lenda – a que, aos olhos mais superficiais, explicava o seu sucesso com «mind games», frases provocatórias e astúcias de sala de imprensa.

Como é evidente, a base de tudo é - e foi sempre - outra, menos fácil de resumir em rótulos apressados: o trabalho minucioso, a planificação, a qualidade de treino e o carisma capaz de unir um grupo em torno de ideias claras. É isso que parece ameaçado, pela frequência com que, depois de Madrid, se multiplica em conflitos que, ao contrário de outros tempos, muitas vezes não têm meta à vista, nem o sucesso do grupo como único pretexto. No lançamento de uma época em que já não terá margem para alimentar o discurso de underdog, o desafio de Mourinho é sair do labirinto para onde a sua imagem pública – ou a perceção que o público tem dele - tende nesta altura a empurrá-lo. A opção é entre regressar às bases, para ganhar - ou ter carradas de razão, como acontece aos generais reformados.