Abdón Porte foi um jogador uruguaio do início do séc. XX.

Era médio e recebeu durante vários anos com evidente orgulho a braçadeira de capitão do Nacional de Montevideu.

Em 1918, com apenas 27 anos, o que na altura já era muito ano junto, fechou a temporada com mais uma vitória que valeu o título de campeão ao Nacional de Montevideu. No final do jogo um dirigente foi falar com ele: disse-lhe que o clube sentia que era altura de ele pendurar as botas e que queriam que ficasse como treinador da equipa principal.

Abdón Porte recebeu aquelas palavras em silêncio.

Vestiu-se e foi festejar com os companheiros. Bebeu, riu e falou de futebol: para um bom médio o jogo nunca acaba. À meia noite regressou ao estádio do Nacional. Caminhou pela relva até ao centro do relvado, puxou de uma arma e deu um tiro no coração.

Dizem que foi o primeiro mártir do futebol e a história dele foi contada por Eduardo Galeano no clássico O futebol ao sol e à sombra.

Abdón Porte foi vítima de uma paixão: a paixão pelo futebol. Sentiu que não conseguiria extrair mais felicidade da vida sem a beleza de uma bola a correr à frente dele e preferiu acabar com ela. Foi um herói.

Um herói trágico.

O futebol para além da bola, do jogo e da emoção de um penálti é feito destas histórias: histórias de paixões, de heróis e de pulsões.

Histórias de grandes feitos e de desfechos trágicos. Histórias enfim que constroem a nossa memória, que dão origem a filmes, livros e músicas.

Histórias que são História.

A boa notícia, leitor, e como disse Jorge Valdano com evidente brilhantismo, é que vem aí aquele mês em que todos os dias são domingo. Um mês cheio de jogos, de remates falhados, de grandes feitos e de heróis: felizes e trágicos.

Um mês cheio de histórias que boas ou más, épicas ou não, são História.

Em nenhum outro evento desportivo, atrevo-me mesmo a dizer que em muito raros eventos mundiais, conseguimos sentir que a história passa em direto tão à frente dos nossos olhos como num Campeonato do Mundo.

E nós, eu e o leitor, todo o mundo todo junto, fazemos parte da história: vivendo-a ao vivo. Mesmo estando no sofá lá de casa. Com as nossas ansiedades, as nossas euforias, os nossos temores, os nossos entusiasmos e os remates felizes.

Um Mundial é história por definição: acontece de quatro em quatro anos e na melhor das hipóteses vivemos uns vinte como este ao longo das nossas vidas.

Abdón Porte morreu antes de nascer o Campeonato do Mundo. Se assim não fosse teria provavelmente encontrado um caminho mais feliz para se tornar herói. Eu e o leitor, felizmente, tivemos mais sorte do que ele.

É verdade que nem eu nem o leitor fomos um futebolista uruguaio do início do século XX - caso contrário estaríamos muito bem conservados -, mas mais importante do que isso: temos a oportunidade de viver a história como ela merece ser vivida.

De cerveja não mão, caderneta debaixo do braço e os olhos nos relvados onde Abdón mereceu estar um dia. Com aquela sensação de que somos parte da história que se está a fazer.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias