O que é preciso fazer para ficar na história do futebol? Marcar mais de mil golos, como Pelé? Levar uma seleção às costas até ao título mundial, como Maradona? Ganhar cinco Bolas de Ouro, como Messi?

Reformulando a questão, até porque também é importante perceber: o que é ficar na história do futebol? Ganhar? Onde se mete a Hungria de 54, então? Ou a Holanda de Cruyff? Encantar? Isso coloca o tema noutro prisma: os 7-1 de Belo Horizonte são história da Alemanha e não do Brasil?

Ficar na história é, no fundo, marcar pela diferença. Para o bem e para o mal. Na alegria e na tristeza. Nas goleadas e nos empates a zero. Ok, um empate a zero é coisa para não marcar ninguém. Exceto todos os que chegaram a finais graças a um resultado destes, descolorido e desprovido de sabor.

O futebol, como todas as áreas, tem, então, espaço para quase tudo. Desde que seja marcante. Trifon Marinov Ivanov é um bom exemplo.

Se fizesse agora o melhor onze de sempre não o iria incluir. Se fizesse o segundo melhor onze de sempre, também o deixaria de fora. Acho que nem no terceiro ou no quarto ou no quinto tinha lugar. E, mesmo assim, significa bem mais do que muitos dos que colocaria nessas terceiras ou quartas melhores equipas de todos os tempos.

Ivanov é um símbolo do futebol retro. Do futebol pré-internet.

Penteado à Chris Waddle versão desleixada. Barba robusta décadas antes do advento lumberjack. Adesivo no nariz, ao melhor estilo de João Vieira Pinto. Olhos arregalados a rematar a figura. Lobisomem, disse alguém. Lobisomem ficou.

Símbolo da melhor geração búlgara de todos os tempos, Ivanov não era o mais talentoso daquela equipa mas quando um grupo de amigos ganha tempo para lembrar o fabuloso Mundial de 1994 (sim, ganha, recordar nunca é perda de tempo) e aquela seleção da Bulgária, o seu nome há de aparecer. Vem Stoichkov, claro. Vem Letchkov, pelo golo à Alemanha. Balakov, Iordanov, Kostadinov e, talvez, Mihaylov pelas ligações lusitanas. E vem Ivanov. Tem de vir Ivanov.

Era um tipo de jogador que cada vez existe menos. Um central à moda antiga ou, como se dizia na altura, um central. Duro a ponto de ser intimidante. Aventureiro. Pegava na bola e, numa manobra que arrepiaria a espinha a qualquer treinador do novo século, arrancava em direção ao ataque. Chutava à baliza a 40 metros, mesmo tendo umas quinze melhores opções. Não é que não as encontrasse. Estava-se marimbando para isso.

O encanto de Ivanov era precisamente esse. Descontração. Percebe-se que seria incapaz de tomar parte no futebol moderno, onde os jogadores parecem todos saídos de uma máquina de clonar. Com abdominais definidos, devidamente depilados, com penteados de régua e esquadro, madeixa e risco à máquina.

Ninguém veria Ivanov deixar o autocarro de bandolete e dois minirrádios nos ouvidos. Com óculos sem graduação. Só levaria o necessaire com as chuteiras debaixo do braço se, de facto, já não coubesse na mala.

Não estou a ver Ivanov a usar o Facebook para dizer o que quer que seja. Twitar um #vamokvamo antes de um jogo. Mostrar as novas chuteiras de cor fúcsia ou azul turqueza no Instagram. Mesmo que, no seu tempo, até gostasse de cobrir os pés de vermelho.

Numa célebre eliminatória do seu Rapid Viena com o Sporting, não teve problemas em evitar os discursos formatados e vazios e admitir, sem rodeios, que não conhecia nenhum jogador leonino. Não foi difícil acreditar.

Ivanov é de uma casta que já não existe. E, voltando à questão do início, com espaço na história do futebol porque a história do futebol é a história de cada um de nós. Os que nos marcam têm lugar. Os que passam e não deixam mais do que um golo bonito ou dois dribles seguidos nunca terão o mesmo espaço daqueles que nos fazem recordar momentos eternos. Os que nunca foram excecionais e são mais recordados pelo que foram do que pelo que fizeram.

Ivanov, como Lalas, Jorge Campos ou Taribo West. Gente que tem tanto destaque no campo como numa qualquer caderneta de cromos. Que impressiona o adulto e cativa o miúdo.

Este fim de semana, o mundo perdeu Trifon Ivanov. O futebol não. Porque Ivanov é futebol. Mesmo que um futebol que já não existe.

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