O Mundial 2010 teve uma ligeira polémica que nem o irritante barulho das vuvuzelas camuflou o suficiente para que não me ficasse no ouvido e na mente. Uma investigação jornalística levantou a hipótese de cidadãos chineses estarem a ser pagos para apoiar a Coreia do Norte nos jogos da fase de grupos, uma vez que os verdadeiros norte-coreanos estavam impedidos de viajar.

Para lá de toda a questão diplomática e de algum racismo que a ideia encerra, o que me doeu mais foi termos chegado a um ponto em que até os adeptos, verdadeira essência do futebol, podem ser pagos para apoiar.

O papel fulcral que o dinheiro assumiu no futebol só não é preocupante por um motivo: não há nada a fazer. É um caminho sem retorno, que não pode ser afrontado mas deve ser questionado.

Confesso alguma aversão ao Manchester City, por exemplo. Não por defender hegemonias eternas ou contestar renascimentos. Não por achar que Noel e Liam Gallagher deveriam ter como castigo por não trazerem mais «Wonderwalls» a este mundo continuar a ver o seu clube na III Divisão, para onde caiu há menos de vinte anos.

Aos meus olhos, o problema do City não é ter muito dinheiro. Em Inglaterra todos têm muito dinheiro. Por toda a Europa todos os clubes dominadores são os que mais podem gastar.

Aos meus olhos, o problema do City também não é não ter adeptos. Pudera. Segundo consta tem até mais do que o rival Manchester United. Não precisa, então, como aconteceu no Mundial, «comprar» adeptos.

Aos meus olhos, o problema do City é que só não «compra» adeptos precisamente porque não precisa.

Não cresceu com auxílio do dinheiro, como outros. Cresceu, simplesmente, por causa dele. Não tem um projeto, não deu grandes estrelas ao planeta futebol. É uma empresa, uma máquina que galgou terreno às custas de empresários tailandeses e milionários dos Emirados.

Subiu tanto que hoje é o clube mais rico do mundo, acima mesmo do Todo-Poderoso Real Madrid. Mesmo que os seus troféus internacionais se resumam a uma Taça das Taças nos anos 60 e tenha quatro títulos nacionais em 143 anos de história. Significa 2,8 por cento de sucesso.

O City tem tantos títulos ingleses como o Newcastle e o Sheffield Wednesday e dois deles até foram já ganhos nesta fase magnata. Mesmo, recorde-se, sendo o clube com mais adeptos da cidade de Manchester.

O City, que já em 1907 tinha problemas com gastos excessivos, vendo 17 jogadores serem suspensos por receberem mais do que o teto salarial da altura permitia, tem, e isto é sagrado, todo o direito de usar como bem entender o dinheiro do seu dono. De construir equipas de sonho, verdadeiras seleções do mundo. De sonhar com craques e até contratar aquele que é, para muitos, o melhor treinador da atualidade.

Mas nunca me tirarão da cabeça que mais do que um contra-ataque, um golo sofrido no último minuto ou um penálti duvidoso, o City teme um crash na bolsa ou a potencialização de uma real alternativa ao petróleo. Pior ainda, que um dia, só porque sim, o mecenas que o levou ao topo se vire para outras paragens.

É por isso que não consegui deixar de sentir que, no último domingo, na final da Taça da Liga, o futebol perdeu com o dinheiro nos penáltis. Porque o Liverpool também gasta (oh se gasta), mas é muito mais do que os cheques que passa.

Enquanto o jogo caminhava para o final e se ouvia nitidamente o eterno «You’ll never walk alone», a imagem focou três adeptos do City espantados. Não eram chineses disfarçados de norte-coreanos mas tinham no rosto o espanto que une as duas histórias: o futebol estava na bancada do lado.

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