O futebol da TV de hoje não é igual ao futebol da TV de antes. Tem mais tempo, mas menos espaço. Mais pressa, menos motivo. Mais palavras, menos conceitos. Mais conversa, menos diálogo.
 
O futebol da TV mudou. Mudou no relato. Umas vezes ficou mais fino, outras mais prático. Hoje, o guarda-redes sai a um cruzamento e agarra uma bola. Antes, neutralizava uma jogada. Hoje, um árbitro poupa um amarelo a um jogador. Antes, contemporizava.
 
Mas, também, antes um médio corria para a direita para tapar o espaço. Hoje bascula. É o mesmo médio, a mesma corrida, o mesmo espaço. Mas todo um novo conceito.
 
Onde havia contra-ataques criaram-se transições rápidas. Onde havia médios centro e só, apareceram os trincos, os seis, os oitos, os oito-e-meio, os não-é-bem-dez-mas-pode-jogar-ali, os atrás-do-avançado, os box-to-box, os carregadores de piano, os uma-espécie-de-Pirlo-mas-mais-rápido.
 
O futebol da TV perdeu drama e ganhou crítica. Já ninguém respira fundo. Antes, um central batia a bola para a frente e aliviava. Hoje, bate a bola para a frente e joga feio. Sem cerimónias. Já ninguém alivia no futebol moderno. Ganhou-se etiqueta, como se Paula Bobone dissesse que o que fica bem é o central sair a jogar.
 
Antes, na TV, víamos resumos dos jogos. Hoje vemos resumos dos resumos.
 
E o resumo alargado foi metido na estante das petazetas e da Bota Botilde. É para nostálgicos, só. Condensa-se 90 minutos em menos de dois, haja quantos golos houver. E, agora, até temos a garantia de ver sempre tudo. Perdemos os «lances dos quais não dispomos imagens», mesmo que golos, ganhamos os «lances dos quais até dispomos imagens mas não vale a pena chateá-lo com isto e vamos mas é ver durante cinco minutos se aquele toque chega ou não para ser penálti e ganhar a Liga da Verdade».
 
Antes, no futebol da TV, víamos o necessário. Por vezes menos que isso, quando aparecia um poste à frente. Hoje vemos tudo e queixámo-nos das mãos à frente da boca que impedem o especialista em leitura labial de perceber o que disse, afinal, o Ronaldo.

Vemos futebol de todos os ângulos. Da esquerda, da direita, de cima, a 360 graus. O futebol da TV é o futuro preconizado por Orwell. Um Big Brother das quatro linhas.
 
O futebol da TV, antes, era menos, mas era de todos. Hoje é de quem paga.
 
Nem sempre é mau. Porque o futebol da TV, salvo raras exceções, faz mal ao futebol. É como uma embalagem de leite: precisa de dose diária recomendada.
 
«Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter.