Em todos os estádios havia o homem do rádio. É claro que eu não estive em todos os estádios para saber, mas por que haveria o meu de ser especial?

O homem do rádio era figura presente a cada jogo, sempre com informações precisas, algumas vezes úteis outras menos, sobre o jogo que todos estávamos a ver ou sobre os jogos que outros estavam a ver pelo país fora.

Conto-vos uma história.

Um dia, estava o «meu» homem do rádio na sua rotina habitual. Sentado, com os olhos no retângulo verde e os ouvidos só ele sabia onde. E, de quando em vez, também nós o sabíamos.

«Olha, golo do Belenenses.» E nós abanávamos com a cabeça. «Marcou o Salgueiros! Está a ganhar fora ao Setúbal». E, ao lado, um outro grupo, resolve entrar no jogo. «E o Marítimo?», perguntam. «Do Marítimo ainda não disseram nada». E passam mais uns minutos. «Belenenses, 2-0», atira o homem do rádio. «E o Marítimo?», questionam os outros. «Deve estar 0-0, não disseram nada…». E todos riem, sem que o homem do rádio perceba porquê.

Está mais preocupado em saber quantos amarelos houve no Beira-Mar-Rio Ave e nem repara que o Marítimo, por quem os outros tantas vezes perguntam, está mesmo ali…a jogar à sua frente.

Outra história verídica. Dois amigos preparam-se para ver um jogo e um deles tira o rádio do bolso.

«Vais usar isso?»

«Claro. Uso sempre.»

«Desliga lá isso, não dá gosto nenhum.»

«Porquê?»

«Porque aí sabe-se sempre mais rápido do que a ver…»

«Estás bem, pa? Nós estamos no estádio…»

Apesar do ridículo da situação, entende-se o engano. O homem do rádio era um tipo simpático desde que não estivesse no café a estragar o momento a todo os que seguem o jogo pela televisão. 

Eu nunca tive a paixão da rádio de muitos outros colegas jornalistas ou meros apaixonados. Mas sei que ela pode ter esse poder de abstração, a ponto de nem lembrarmos quem joga à nossa frente ou acharmos que pode antecipar o que estamos a ver ao vivo.

Vem isto a propósito daquilo que deveria ter sido o último domingo e do que deveria ser o próximo. Dias de futebol da rádio. Dias de estar com os olhos num jogo e os ouvidos em três ou quatro campos onde, à mesma hora, se joga.

É incompreensível a decisão de permitir que, a uma jornada do fim, equipas que lutam pelo mesmo objetivo joguem em horas (e dias) diferentes. E este incompreensível entra mais pelo campo do inaceitável, porque compreender os motivos não é difícil. Mandam as televisões.

Deveria mandar o bom senso.

Ter as duas últimas jornadas da Liga como os dias do futebol da rádio era do pouco que parecia intocável do futebol de outrora. Até isso já foi.

É verdade que caminhamos para um tempo em que o homem do rádio vai ser substituído pelo homem dos vines ou dos gifs. Vamos deixar de ouvir o que ele diz e vamos ver o que ele também está a ver.

Os grandes estádios terão wireless, os smartphones serão os novos rádios a pilhas e a ideia de que ao vivo se perdem as repetições ficará numa gaveta recôndita de outros tempos.

Muito provavelmente, iremos ver menos ao vivo e mais em vídeo. É já uma realidade neste mundo em que nos andamos a filmar uns aos outros. Uma equipa ganha um título e passeia de autocarro: na estrada, os adeptos filmam a equipa; no autocarro, a equipa filma os adeptos. Apetece gritar: vivam o momento!

O primeiro passo para o futebol do futuro será dado, ao que tudo indica, no próximo ano, quando todos os jogos terão transmissão televisiva. Nada contra e terá, até, relevância em pontos como a avaliação dos árbitros, por exemplo. Não nos cafés ou redes sociais, mas por quem, efetivamente, tem de os avaliar.

Ficará para os clubes a tarefa de convencer o povo que o futebol a sério vive-se no estádio. Onde ainda se cheira a relva, ouve-se o lindo barulho de uma bola que bate no poste e conversa-se com desconhecidos como em mais nenhum outro lugar. 

Mesmo que seja só para dizer que foi golo a 300 km de distância.

«Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter.