Quando Pelé picou a bola por cima do atónito sueco que lhe saiu ao caminho e rematou para o golo na final do Mundial de 58, elas já estavam lá.

Quando Maradona decidiu dar ao mundo a prova mais evidente do génio que lhe consumia o espírito e deixou os ingleses pregados ao relvado debaixo do calor do Azteca, elas estavam lá. Um a um, Hoddle, Reid, Sansom, Butcher, Fenwick e, por fim, o guarda-redes Peter Shilton só as viram passar.

Quando Van Basten reduziu a pó a expressão ‘ângulo impossível’ e ergueu os braços para o título inédito da laranja mecânica, elas continuavam lá. Como estavam quando Roberto Carlos inventou uma nova geometria na linha reta entre a bola e a baliza escrita a pontapé.

Quando Zidane acertou no ponto exato de uma bola que caía a pique desde a linha lateral e consagrou o Real Madrid dos galáticos, elas ainda estavam lá.

Foram elas que ajudaram a desenhar os ziguezagues de Best, que ampararam as pernas tortas de Garrincha, sustentaram a ira de Cantona, a dança de Milla, o instinto de Lineker, a classe de Hagi ou Bergkamp.

A história do futebol cabe num par de chuteiras pretas.

As mesmas dos génios de outros tempos, desde que os tons acastanhados e as traves de madeira deram lugar à mais bela e discreta cobertura para os pés de toda esta viagem atrás de uma bola. As mesmas pelas quais me apaixonei em miúdo e que, para mim, tinham o mesmo encanto no pelado ou no paralelo que servia de tapete à rua da minha casa. Que cabiam com a mesma exatidão num jogo de futebol e numa cerimónia de colarinho branco, assim a minha mãe deixasse. Que serviam de chuteira, bota, sapato e até pantufa na hora de dormir.

A história do futebol escreve-se a preto e branco. Por muito colorido que tracem no presente, por mais arco-íris que desenhe uma equipa a entrar em campo, pensarei sempre que nada transmite mais alegria e a verdadeira essência do jogo do que o tal par de chuteiras negras.

Nada dá mais estilo a um jogador que umas botas da cor da noite. Porque eram o complemento perfeito à veste sagrada. Discreto e útil, a cobrir e perfumar a arma mais letal de um jogador: o pé.

Os rosas, amarelos e fluorescentes que preenchem os retângulos verdes pelo mundo fora nunca terão o encanto do preto e branco. Porque roubam o destaque ao essencial. Importa o pé, não a cobertura. Importa o símbolo, não a camisola, sobretudo se alternativamente horripilante. Importa a essência, não o exterior, para usar filosofia de esquina. Esta mais justa.

A história do futebol escreve-se em ciclos. Hoje glorifica-se o vulgar. Um dia, acredito, a classe voltará a ser regra. E a tinta que escreve as letras douradas do futebol voltará a ter o negro a predominar.O futebol será mais feliz calçado de luto.

«Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter.