Não precisei de nenhum clube de futebol para me apaixonar pelo ciclismo. Os dois são os meus desportos de eleição. O futebol por aquilo que todos nós sabemos. Se precisa que lhe explique nesta altura da nossa relação é porque não me conhece minimamente. O ciclismo porque é o verdadeiro desporto do povo.

É gratuito, emotivo, cria lendas. Reúne amigos ou família de cerveja na mão direita e bifana na esquerda à espera que passe o pelotão. É para homens que analisam o lado tático, entre os que passam melhor ou pior. É para rebeldes que arriscam sprintar ao lado do herói em cima da máquina, arrepiando a espinha a Marco Chagas. É para as mulheres que aplaudem, para as crianças que perguntam o nome do «maluco» que segue montanha acima.

O ciclismo é a luta do homem contra a natureza e contra a sua natureza. O seu lado falível. Testado ao limite. Só ele, as pernas e os pedais que fazem as rodas girar.

Cresci a ver ciclismo, por cá e lá por fora. A cultivar ídolos, a decorar nomes. De pessoas, de equipas, de lugares.

Se me falam na Torre, antes de neve ou esqui, lembro a subida isolada de Vítor Gamito desde a Covilhã. Se me perguntam pela Senhora da Graça, não me vêm à cabeça promessas ou romarias, mas o suor do fininho Michele Ladomada, da esquecida Scrigno.

Ainda me lembro que a primeira vez que vi um banco Banesto, julguei que se tratava de uma loja de merchandising. Mais do que uma marca de relógios, a Festina era ciclismo até ao escândalo. ONCE é a organização espanhola de cegos? Para mim era apenas a equipa do Joseba Beloki, como a Deutsche Telekom era a equipa de Jan Ulrich e ainda me lembro de pensar porque raio é que a Artiach tinha o mesmo nome das bolachas lá de casa.

Se me falam de Bom Petisco eu não digo atum, digo Tavira. Milaneza não é massa, é Maia. Se não fosse o ciclismo provavelmente nunca teria ouvido falar da Janotas e Simões, da Garcia-Joalheiro, da Ajacto, da Amore-Vitta ou da LA Alumínios.

Portanto, no meio de todo este lado mítico, nunca me fez falta ter futebol no ciclismo, porque cresci no tempo em que só lá havia o Boavista. Arrisco dizer, passava bem sem ele (o futebol, porque o Boavista também é ciclismo).

Não que o ciclismo, desporto tão maltratado essencialmente por quem descarrega metralhadoras no próprio pé, esteja num patamar de excelência, sobretudo em Portugal. Antes estivesse.

A Volta não cria heróis. Não há um Joaquim Gomes, ídolo de sempre, desde a Volta ganha em 1993 e dos duelos com Orlando Rodrigues ou os estrangeiros que lhe roubavam o que é dele por direito. Era o que eu achava, desculpem. Ele era a Volta, ele levava Zenon Jaskula até ao topo da Serra de Estrela para ver o velhote fugir no final. Ele dava cor à branca camisola da Sicasal.

Não há um Gamito, em sofrimento até à vitória. Um Paulo Ferreira que nunca desiste. Um recordista David Blanco. Até um miúdo Nuno Ribeiro, serra acima em 2003.

O futebol, com a paixão que desperta, pode fazer bem ao ciclismo. Muito bem. Se estiver para aí virado. Se trouxer gasóleo para a fogueira, não tenho problemas em dizer: não faz falta. Não há já problemas que cheguem?

Cantava Zeca Afonso: «Seja bem vindo quem vier por bem». Porque se os ciclistas são fantásticos à quinta e dopados ao domingo, conforme a camisola que vestem, deixem-nos em paz.

Provavelmente, continuarão a definhar, à procura de mecenas para sobreviver. A esticar orçamentos ao limite. Mas enquanto houver famílias na berma da estrada a gritar por um Rui Costa, um Nelson Oliveira ou um Sérgio Paulinho, haverá paixão. E esse ainda é o ingrediente chave do ciclismo.

 «Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter.