Não, caro leitor: esta crónica não é para defender a ideia de que «Marco Silva será o novo José Mourinho».

Isso seria o pior que poderia fazer ao jovem treinador do Estoril, numa altura em que acaba de obter um feito simplesmente notável: segunda presença seguida nas competições europeias e, desta vez, a pisar os calcanhares do pódio desta Liga.

Felizmente, essa moda de rotular um jovem técnico português que esteja a brilhar de «próximo Mourinho»

Nos anos que se seguiram ao aparecimento arrasador de José Mourinho como técnico de topo do futebol internacional (2003 e 2004 com a Europa aos seus pés no FC Porto, títulos ingleses no Chelsea, título europeu no Inter de Milão, com plantel que estaria bem longe de se poder considerar entre os mais apetrecheados da Europa), a tentação de ver em jovens treinadores com algum sucesso esse tal «novo Mourinho» foi demasiado grande.

E, por vezes, demasiado injusta: para quem era rotulado e para a referência que se queria clonar.

O passar dos anos foi corrigindo esta tendência, na qual tantos (jornalistas, cronistas, treinadores, dirigentes, jogadores) acabaram por cair.

O futebol é um fenómeno tão complexo, tem tantas variáveis, que não seria sequer desejável que alguém fosse tentar copiar à risca o estilo de um par, por muito bom que fosse. Nem mesmo que esse modelo fosse... José Mourinho.

A experiência conturbada no Real Madrid ajudou, também, a desmontar, de algum modo, o mito de invencibilidade em torno de José Mourinho.

«Mou» arranjou problemas que lhe dificultaram a vida no Real? Certo. Saiu sem atingir os objetivos que pretendia (mais títulos espanhóis, um título ou pelo menos uma final europeia)? De acordo.

Mas mesmo no clube merengue conseguiu fazer história (é só consultar os registos de triunfos dos treinadores do Real Madrid no último meio século), abandonando a capital espanhola com a sensação de que poderia ter feito bem mais, caso tivesse havido outro ambiente interno e se o técnico português tivesse tido pelo menos mais uma temporada no cargo.

Capacidade de repetir momentos especiais

Mourinho pode não ter saído feliz de Madrid, mas reencontrou em Stamford Bridge algumas das condições que fizeram dele, sem qualquer espécie de dúvida, um treinador especial.

Melhor do Mundo? Difícil dizer isso, sobretudo quando, nos últimos anos, vimos Pep Guardiola ganhar tudo, e várias vezes, em Barcelona, e chegar a Munique, conseguindo pôr, em poucos meses, o Bayern a jogar uma versão alemã do «tiki-taka», com muita (mesmo muita) posse de bola a aumentar o cunho dominador.

E há também um Del Bosque de êxito absoluto na seleção de Espanha, e houve Heynckes no Bayern até à época passada, e há o desconcertante Jurgen Klopp a fazer trabalho extraordinário no Borussia Dortmund (com fortes hipóteses de antecipar a aventura de Tata em Camp Nou e vir, quem sabe, a ser treinador do Barcelona já na próxima temporada).

Todos estes exemplos têm o seu quê de... especial. Mas o que impressiona em José Mourinho é a repetição desta capacidade de ser especial.

Sorte? Isso pode explicar o sucesso uma vez... duas vezes, máximo.

Ora, com «Mou» os números não oferecem margem para qualquer dúvida: nas últimas 11 épocas, desde a sua estreia vencedora na Champions em 2003/04 com o FC Porto campeão europeu em Gelsenkirchen, José Mourinho chegou oito vezes (!) às meias-finais, por quatro clubes diferentes (FC Porto uma vez, Chelsea três vezes, Inter de Milão uma vez, Real Madrid três vezes).

Nenhum treinador na história do futebol tinha conseguido tal feito. Pode não ser o favorito a suceder a Heynckes como treinador campeão europeu, mas caso consiga passar o At. Madrid nas meias (tarefa bem complicada) e, depois, se vencer o Bayern ou o Real (bem, isso seria mesmo a suprema ironia...) na final de Lisboa, então aí Mourinho entrará mesmo para a história como melhor treinador europeu de sempre: será o primeiro a vencer três Champions por três clubes diferentes (FC Porto, Inter de Milão e Chelsea).

Até hoje só um treinador logrou vencer três títulos europeus de clubes: Bob Paisley. Mas sempre pelo Liverpool (1977, 1978 e 1981).

Mourinho pode chegar lá de forma ainda mais assinalável. Será já no próximo dia 24 de maio? Não é favorito (o Bayern e o Real têm plantéis bem mais ricos e recheados).

Mas a forma como Mourinho tem conduzido este regresso ao seu querido Chelsea (a declaração de amor que fez na apresentação do regresso disse tudo sobre esse estado de espírito) permite abrir quase todos os sonhos.

A sorte dá muito trabalho

Aquela recuperação da derrota de 3-1 em Paris fez-nos recordar como Mourinho é mesmo um treinador diferente dos outros. O PSG tinha entrado a matar na primeira mão, chegara ao 1-0 bem cedo, o risco de um resultado comprometedor era grande. Mas o trabalho de casa estava feito, o Chelsea conseguiu pôr gelo naquela super entrada do PSG, chegou ao 1-1 e quase chegou ao intervalo a vencer 1-2.

O empate com golos era simpático, mas a segunda parte foi aziaga: autogolo de David Luiz, passeio de Pastore no 3-1 em momento que já não permitia reação coletiva.

Ficava, pelo menos, a sensação de que o dedo do treinador contara para o melhor momento e não tinha sido o culpado pelos dois golos sofridos no segundo tempo.

Havia que esperar por Stamford Bridge. Ganhar pelo menos 2-0 a um PSG que somava vitórias e golos marcados era missão bem espinhosa. Mas... era Mourinho que estava no banco do Chelsea.

O Chelsea teve sorte nesse jogo? Sim, teve. Pouco antes do 2-0 mágico de Demba Ba, Cavani teve duas ocasiões soberanas para um 1-1 que acabava com a questão. Mas a sorte em momentos decisivos como esse dá mesmo muito trabalho. Mourinho mereceu por inteiro a qualificação e, a partir de agora, é mesmo tudo possível na época de estreia deste regresso ao local onde o «Special One» foi mais feliz.

Uma vénia a Marco Silva

Marco Silva é de outra geração: tem 36 anos, menos 15 que Mourinho. Mas o seu arranque de carreira como técnico principal também está a ser notável.

Basta acompanhar os jogos do Estoril para perceber que o sucesso de Marco Silva tem muito pouco a ver com sorte e quase tudo a ver com mérito e competência.

O Estoril de Marco Silva impressiona pela maturidade. Pela forma como sabe interpretar os diferentes momentos do jogo. Pela qualidade dos processos, pela facilidade com que sai para o contra-ataque, pela segurança com que defende, mesmo nos jogos de grau de dificuldade mais elevada.

Duas presenças seguidas na Liga, numa equipa com as dificuldades do Estoril, é um balanço simplesmente fantástico. Ainda mais notável quando nos apercebemos que Marco Silva perdeu quase todos os melhores jogadores da época passada (Licá, Steven Vitória, Jefferson e Carlos Eduardo), e ainda Luís Leal, a meio desta temporada. Ah, e com lesões arreliadoras pelo meio.

A tudo isto, Marco Silva reagiu com um sério, tranquilo e muito competente trabalho de continuidade. O Estoril soube sempre encontrar respostas, deu prioridade ao coletivo sobre os interesses individuais, seguiu o seu caminho regular, quase sempre com bons resultados.

Demasiada qualidade para se conseguir tirar mérito

Sim, há quem não goste do estilo de José Mourinho. Marco Silva terá um registo mais consensual, mas mesmo assim também ouço algumas pessoas a colocar reservas sobre a sua qualidade.

Mas uma análise objetiva pelos resultados das carreiras destes dois ilustres representantes de duas gerações diferentes de técnicos portugueses tornam mesmo muito difícil colocar em causa os seus méritos.

No jogo com o Paços, depois de mais uma vitória, adeptos do Estoril exibiram uma tarja chamando a Marco Silva «o Special One da Amoreira».

O rótulo é mais do que justo e aponta para voos bem mais elevados do técnico do Estoril, para muito breve.

Não será o «novo Mourinho», nada disso. Será Marco Silva e tem quase tudo para dar certo.

Nem de propósito» é uma rubrica de opinião e análise da autoria do jornalista Germano Almeida. Sobre futebol (português e internacional) e às vezes sobre outros temas. Hoje em dia, tudo tem a ver com tudo, não é o que dizem?