Muitos sucumbiram, esmagados pelo peso da herança. Messi tornou-se apenas Messi com os anos. Libertou-se do papel químico, driblou o decalque a carvão e ganhou vida própria. Nome próprio. O seu destino. A sua própria dimensão, gigantesca.

Quem tem jeito para definir jogadores com poucas palavras chamou-lhe, um dia

Maradona sem um sorriso.

Não a Messi, a Riquelme. Que nunca foi totalmente Riquelme. Preferiu ser Román, o Román simpático com quem conversavam na rua. Como quando ia à mercearia comprar alguma coisa. Riquelme não era a sua personalidade, situava-se demasiado distante na relação com o outro.

Aos poucos, tornou-se o Pelusa triste, com uma lágrima tatuada junto ao canto do olho. Faltou-lhe conviver com Ronaldinho, a quem deram vários dons e aquele ar hang loose, que ainda vai do gesto surfista ao sorriso permanente, quase independente da vontade. O mesmo Ronaldinho que lhe abriu a porta de saída em Barcelona.

Era mais um estrangeiro, um estrangeiro a mais. E ele, o elo mais fraco. Também teria ajudado, claro, ter tido menos Van Gaal na sua vida

Com a bola nos pés és o melhor do mundo, sem bola jogamos com menos um

O general holandês sempre foi destas coisas. A embirração começou no primeiro dia, minutos depois ter estado ao seu lado, enquanto era apresentado. Riquelme não era dos seus.

Até Bilardo, o pior campeão do mundo que pode haver, tinha percebido. Disse a Pumpido para chamar o miúdo. Era hora de treinar com os grandes. Colocou-o em campo com 18 anos e a Bombonera rendeu-se àquela camisola 8 que herdara do Argentinos.

Viria o tempo em que patrón Bermúdez o encostaria à parede. Ia ser um dos melhores do mundo e era a altura de ter consciência do que o esperava, gritou-lhe. Román, que para o pai nunca jogava bem, engoliu em seco.

Argentinos. Boca. O falhanço no Barcelona. Exílio num clube menor, que tornou grande. San Paolo, El Madrigal. O Submarino não foi campeão, mas chegaria a pódio de recorde. E aquela miséria daquele penalty falhado perante Lehmann e o Arsenal, que poderia ter levado tudo para prolongamento? Quem sabe, talvez a final da Liga dos Campeões? Faltou-lhe um Nápoles sim, mas recuperou em Buenos Aires, bostero de alma e coração. Introvertido, passou ao lado da desgraça que arruinou o barrilete cósmico. Aquele jeito para segurar a bola e aguentar meio mundo a tentar travá-lo. E a insistência no pé direito, calçado por botas pretas, ainda realça mais a imagem

Riquelme era o reflexo invertido de Maradona no espelho

Hola Diego, vais ao vestiário? Onde estás? Vem festejar connosco!

Era a primeira Libertadores, e Maradona estava do outro lado do microfone de um repórter. Estaria sempre do outro lado. Na bancada.

Anos depois, enquanto os companheiros festejavam a Intercontinental, andava de volta de Figo, o melhor do mundo, para lhe ficar com a camisola. O Boca era a sua casa. Então e sempre. Depois de Espanha, estaria de volta à Bombonera, naquela felicidade triste que era tão sua

Quero devolver-lhes um pouco do que me dão!
 
Román, sem sorrir, absorveu tudo, com a mão junto aos ouvidos. Mas também dava tudo. Um dia, deu-o por Gaitán, já vendido para o Benfica

Senti algo no joelho e o treinador disse-me para sair. Disse-lhe: não saio nem com um cabelo. Porquê? O chico queria sair para ser aplaudido, ia-se embora. Acabei morto, rompi o menisco e tudo. Que queres? Gosto dele como um irmão! Pelos meus companheiros faço qualquer coisa.

Depois de Van Gaal e Pellegrini, Falcioni e mais uma traição. Saiu do onze, mas as bancadas ameaçaram cair sobre o treinador e o resto da equipa. Voltou. Continuou grande. Depois, os dirigentes. Há dúvidas perante uma lenda? Não se assina de olhos fechados? Que ingratidão! Resistiu uma vez, na segunda voltou ao Argentinos. Também para lhes dar um pouco de si. A sua maneira de agradecer.

Ele, o Maradona que só quis ser Román, não merecia a desilusão.

Nem o Boca merecia que tenha abandonado a carreira. Não queria ser adversário do seu clube de sempre. O Boca não o mereceu. O futebol não o mereceu. Nós que gostamos de futebol não soubemos merecê-lo.

Já podes sorrir, Román! Ganhaste! Não há maneira de não ter saudades do teu génio. Das tuas jogadas tão tuas. Dos teus golos tristes!
 
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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»        é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias. Pode segui-lo no        FACEBOOK        e no        TWITTER       . O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.
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