O meu pub em Hammersmith». A esta zona da cosmopolita Londres chega gente de todo o mundo. Enquanto se bebe uma pint, fala-se de desporto: futebol, basquetebol, ténis, Fórmula 1, o que for. Depende de quem passa pela porta. O consumo é obrigatório e as bebidas nunca são por conta da casa. Aqui também se pode falar da NFL, mas se alguma vez se proferir a palavra «soccer» fica o aviso: Woody, o cozinheiro, tem cara de Vinnie Jones e andou na escola do Cantona. Ah, e é primo do Roy Keane. Cuidado...
 

Tirei o livro de uma estante suja, limpei-lhe o pó, e abri-o. A primeira folha solta depois da capa é negra. Toda preta, sem cor. A seguinte é branca. Toda branca. Sem cor também. Na seguinte, porém, aparece uma que diz: «OPEN.» Enquanto o sol entra pelas frestas do bar, viro mais uma página. A minha memória e saudade sorriem.

Deixo a limpeza e sento-me. «Se tivesse de relatar todos os momentos em que tu marcaste presença na minha vida, grandes ou pequenos, dificilmente o conseguiria fazer e por isso estarei eternamente agradecido a ti.»

Qualquer barista tem uma sabedoria própria. Tem leis e regras. E opinião sobre tudo. E supostamente não devia ter sentimentos, para não se meter em sarilhos. Seja com mulheres, seja com o tipo mais simpático do mundo que acabou de perder por 0-6 e pede bondade no pagamento.

Mas aquelas palavras dão-me um nó na barriga. São do meu sangue. E estão no sítio certo. Num livro sobre desporto [autobiografia de Andre Agassi]. Porque se eu tivesse de relatar todos os momentos em que o desporto marcou presença na minha vida dificilmente o conseguiria.

Porque há este, vivido atrás dessa baliza.


Provavelmente, foi aquele me fez sentir mais vivo. Da preocupação do 0-1 à esperança na recuperação. Do alívio com o golo de Postiga à raiva boa no golo do Rui Costa. Do desalento com o 2-2 de Lampard até à fé das grandes penalidades. Da gargalhada que provocou o penálti do Beckham à *+$%** no do Postiga. Da euforia com o pontapé de Ricardo até à satisfação final, quando se percebe antes de se dormir, que o que se viu foi, realmente, histórico.

Depois também há este, visto pela TV:

What? Como é que ele fez aquilo? Oxalá pudesse fazê-lo outra vez...

Tinha quase 14 anos quando Senna saiu em Tamburello e acabou a última corrida da vida como quase todas as outras: no primeiro lugar. A morte de Ayrton deixou-me suspenso. Como as reticências numa frase. E em lágrimas…

Senna, como piloto, tinha defeitos de homem.

Hoje, sentado numa cadeira no meio de um bar vazio, consigo ter a distância, e a idade, para lhe perceber as falhas. Mas aos 14 anos, Ayrton, o homem que não piloto, aparecia-me como alguém bom. Um homem bom. Um piloto tremendo e competitivo como ninguém foi em pista. Mas acima de tudo um homem bom. Daqueles que nos elevam os valores e os comportamentos. Nos dignificam só de admirá-los. Ayrton, o homem, era isso tudo para mim. E ainda é. Senna, o piloto...

Não consigo relatar todos os momentos em que o desporto marcou presença na minha vida. Mas consigo dizer a quem me escreveu aquelas linhas num livro de Agassi que, se calhar, estava apenas a tentar ser mais Ayrton, o homem, do que Senna, o piloto.

E esse é também o maior elogio que posso fazer a um ídolo.

O meu pub em Hammersmith» é um espaço fictício e de opinião do jornalista Luís Pedro Ferreira. Pode segui-lo no Twitter.