Sempre que abrem as janelas de transferências, reacende-se o vício de explicar o talento através dos números. O talento é interpretado como uma unidade de medida quantitativa, tal como acontece durante a época. Mais golos, melhor ponta-de-lança. Mais assistências, melhor médio. Mais caro, ora, melhor jogador. Não se discute a qualidade do passe, mas o número de passes completos. Para apontar o dedo aos desequilibradores existe o número de perdas de bola. Sobrevalorizam-se guarda-redes mediante o número de golos sofridos. Curiosamente, na hora de desenhar uma convocatória, é raro encontrarmos listas iguais, pois a percepção de talento muda de pessoa para pessoa, independentemente dos números. O talento é uma percepção, não uma unidade de medida quantitativa, por isso é que Roberto Martínez e Rui Jorge priorizam perfis diferentes quando são chamados a escolher jogadores, não se limitando à simples tarefa de optar pelos melhores classificados de rankings que buscam transformar a percepção de talento numa unidade quantificável. Será benéfico ter, dentro do mesmo projecto desportivo, dois treinadores com percepções de talento tão distintas?

Se partirmos da premissa de que quem tem de representar a Selecção são os melhores, entramos imediatamente no pantanal da ambiguidade. A frase é repetida até à exaustão e sobrevive ao tempo, mesmo tendo nascido órfã de uma ideia. Para que ganhe sentido, torna-se obrigatório explicar de que forma estruturamos o termo 'qualitativo' “melhores”. Pelo que é que nos regemos para considerar um jogador melhor do que o outro? Olhamos para o clube que representam? Para o número de títulos já conquistados? Olhamos para a liga onde jogam? Para as titularidades ao longo da temporada? Olhamos para o sistema em que costumam actuar? Para o estatuto? Olhamos para as características individuais? Não podendo, à partida, descartar algum dos pontos anteriores, qual deles se acentua quando estamos perante a árdua tarefa de eleger “os melhores”? Não vingará, na maior parte das vezes, a percepção de talento aplicado ao futebol que queremos jogar?

A meu ver, a proposta de jogo é a linha mestra de um projecto desportivo, uma espécie de bússola. Definir como é que se quer jogar selecciona os treinadores que cabem nessa ideia e os jogadores com o melhor perfil para interpretá-la. Definir como é que se quer jogar é dar identidade a um projecto desportivo, é o que permite olhar para um jogador ou para um treinador em qualquer lado do mundo e dizer que possui um perfil que encaixava mesmo bem no projecto A ou B. A expressão “é um jogador à Barça” resulta de um trabalho exímio na criação de uma identidade, apreciando-se mais ou menos a linha mestra blaugrana.

Sabe-se que há muitos projectos desportivos cuja bússola é o treinador, que adoptam a linha mestra de outrem ao invés de, antes, definirem a linha mestra. Acontece que, no caso das nossas selecções, nem sequer encontro uma bússola e, ainda que compreendendo a quota parte da dependência das selecções face ao rendimento dos jogadores nos respectivos clubes, não se pode defender que esse é um dos principais critérios e, ao mesmo tempo, justificar a chamada de Renato Sanches apontando para as suas características individuais. Qual é, afinal, a nossa linha mestra? Que tipo de jogadores estão mais próximos das selecções e porquê? Quem é que olha para os escolhidos de Rui Jorge e encontra uma percepção de talento semelhante à de Roberto Martínez?

Eu vejo, sobretudo, dois treinadores agarrados aos seus sistemas com unhas e dentes, como se de rivais se tratassem, pois em pouco ou nada se aproximam. Vejo jogadores a ganharem estatuto por culpa das características individuais, como João Palhinha ganhou com Roberto Martínez, e outros que não o perdem pelas mesmas razões, como Tiago Dantas com Rui Jorge. Quase tão parecidos como a água e o azeite. Vejo oportunidades ganhas à conta do rendimento nos clubes, como as concedidas por Roberto Martínez a Diogo Leite e a Toti Gomes, outras que chegam sem que essa premissa se cumpra, como a chamada de Diego Moreira para substituir Fábio Vieira. Vejo Vitinha, um dos indiscutíveis para Rui Jorge, a ser opção atrás de Danilo no meio-campo de Roberto Martínez. Vejo João Neves, nunca antes convocado para os sub-21, a assumir a titularidade em todos os jogos do Europeu. Qual é, afinal, a nossa linha mestra?

Algum dia João Neves tinha visto a cor da convocatória dos sub-21 sem o brilharete no Benfica naquela recta final de época? Rui Jorge já demonstrou que tem convicções, porque confiou em Vitinha e Fábio Vieira quando ambos ainda estavam muito longe de ser aposta séria em contexto de clube. Mas, então, isso significa que as nossas selecções privilegiam um perfil de jogador? Se sim, por que é que João Neves nunca havia sido chamado? Se não, por que é que Vitinha e Fábio Vieira foram aposta numa altura em que, no clube, as coisas não lhes estavam a correr assim tão bem? Os jogadores estão dependentes do que fazem nos clubes para chegarem às selecções ou a força maior reside nas características individuais que as selecções decidiram desenvolver?

Rúben Neves realizou uma temporada melhor do que a de Vitinha? Roberto Martínez já demonstrou que não privilegia as características do médio do PSG. Mas, então, isso significa que as nossas selecções privilegiam um perfil de jogador? Se sim, por que é que, dentro do mesmo projecto desportivo, se privilegiam perfis tão díspares? Se não, o que é que se privilegia? Para chegarem às selecções, os jogadores estão mais dependentes do que fazem nos clubes ou a força maior reside nas características individuais?

Um projecto por explicar é um projeto sem identidade, irreconhecível, em torno do qual não se juntam pessoas. Que a bússola desse projecto sejam os títulos é o motivo que nos leva a andar perdidos a maior parte do tempo, mesmo com a mais completa geração de sempre às costas. Qual é, afinal, a nossa linha mestra?