PLAY é um espaço semanal de partilha, sugestão e crítica. O futebol espelhado no cinema, na música, na literatura. Outros mundos, o mesmo ponto de partida. Ideias soltas, filmes e livros que foram perdendo a vez na fila de espera. PLAY.

SLOW MOTION:

«EN UN MOMENTO DADO» - de Ramon Giéling

«Pai, mas ele era melhor do que eu?»

«Era filho, mas isso é por tu seres pequeno. Ele foi a Mundiais, ganhou muitos troféus e agora é treinador. Como eu. Esforça-te muito e um dia se calhar podes ser como ele.»

«Ele era melhor do que o Pelé?»

«Sabes que o Pelé e o Garrincha eram os meus ídolos. Jogaram na melhor seleção de todos os tempos, o Brasil de 62. Eu tinha 13 anos, pouco mais do que tu.»

«E do que o Eusébio?»

«Era diferente, filho. O Eusébio foi um portento. Nunca vi ninguém a rematar à baliza como ele. Já te mostrei as cassetes VHS que temos com os jogos dele.»

«Pai, mas nunca me tinhas falado dele. Agora só falas do Maradona. Quando é que me dás a camisola da Argentina com o número 10?»

«Na quinta feira a tua avó vai à feira e compra-a. Depois temos de coser o número nas costas, com tecido preto.»

«Ele era melhor do que o Maradona?»

«Tu viste comigo os golos do Maradona à Inglaterra. Na semana passada. Achas que alguém consegue fazer melhor?»

«Ontem à tarde na escola marquei um parecido. E não tínhamos bola. Foi com um pacote de leite chocolatado todo amassado.»

«Não mintas ao teu pai.»

«Pai e a Holanda joga sempre de cor de laranja? Nunca tinha visto, eles não estão no Mundial. Porquê?»

«Não estão neste, mas em 74 e 78 tinham a equipa mais forte. E ele era o melhor de todos. Fazia tudo bem. Era rápido, tinha uma técnica fantástica e marcava golos. A Holanda tinha um futebol incrível. E havia outros bons jogadores: Rep, Krol, Rensenbrink…»

«Tens as cadernetas desses Mundiais ou só este filme?»

«Tenho. E tu já as viste. Mas ele não jogou no Mundial de 78, o ano em que nasceste. Só jogou neste de 74, que estamos a ver».

«Porquê?»

«Coisas de adultos. Complicadas.»

«Dás-me uma camisola da Holanda?»

«Filho, acho que na feira não há. Temos de procurar no Porto, em alguma loja de desporto.»

«E podemos coser o número 14 nas costas?»

NOTA: a conversa data de 1986, fins de junho. No sofá, à noite, a ver o filme oficial do Mundial de 74, versão VHS. A camisola laranja nunca chegou a aparecer.

PS: «Black Sails» - de Robert Levine e Jonathan Steinberg
Piratas, mercenários, legiões de colonizadores espanhóis, galeões e espadachins. Tudo o que os rapazes – pelo menos os rapazes da minha rua – idealizaram nas brincadeiras de polichinelo está nesta maravilhosa série para a televisão.

No porto de Nassau, ilha de New Providence, a trama envolve traições, planos para emboscar o inviolável navio Urca de Lima, alianças e esquemas dignos do mais maquiavélico dos imitadores de Judas.

1715, Índias Ocidentais, a tripulação do Capitão Flint procura sobreviver e reinar num ambiente de constante insurreição. Um produto fantástico, já na sua terceira temporada. Eu ainda vou na primeira, em busca do mapa do tesouro.

SOUNDCHECK:

«OEI OEI OEI (DAT WAS ME WEER EEN LOEI» - de Johan Cruijff
Mestre com a bola nos pés, Johan Cruifff teve o bom senso necessário para perceber que o talento não o acompanhava na voz. Em 1969, o cérebro do Futebol Total e face mais evidente da Laranja Mecânica atreveu-se a gravar este single.

Em tradução livre, o título significa «Oh oh oh, outra deceção». Fala de um pugilista que perde um combate, mete-se nos copos e ainda tem de aturar a esposa quando chega a casa.

Uma brincadeira de Johan. Inofensiva.

PS: «Villa Soledade» - dos Sensible Soccers
Fechar os olhos, sentir a frequência pujante no corpo, tendões, ossos e sangue. Tudo mexe, tudo fervilha, tudo ameaça explodir. Até à acalmia, a paz, a reconciliação.

Magnífico, de uma ponta à outra. O trio de Vila do Conde derrama talento e criatividade, faz-nos sentir, faz-nos dançar. Nesta altura, não encontro em Portugal outro projeto com esta dimensão artística.

A Igreja dos Sensible Soccers vive de devotos, de crentes, de seguidores e não precisa de esmolas. A música, os sons de esquizofrenia regulamentada, são o Pai Nosso dos meus recentes dias e a oração necessária para um despertar mergulhado em sorrisos.

Sete faixas poderosas, fragmentação pop, requintes de genialidade e sentido de humor. Sim, sentido de humor, nem que seja só nos títulos das músicas: «Shampom», «Nunca Mais Me Esquece», «Clausura» a abrir e «Apertura» a fechar.

Manuel Justo, Hugo Gomes e Filipe Azevedo, amantes da bola, cientistas da clave de sol, ditadores numa república só deles: «Villa Soledade», um Estado de alma.

VIRAR A PÁGINA:

«MY TURN: A LIFE OF TOTAL FOOTBALL» - de Johan Cruijff
Autobiografia do recentemente falecido Johan Cruijff. Um livro cheio de histórias fantásticas, partes soltas de uma personagem condenada à eternidade. Rinus Michels, Frank Rijkaard, Pep Guardiola, estão todos lá, rendidos às ideias e à personalidade do mago. Um livro para guardar religiosamente, uma peça valiosíssima de coleção.

«PLAY» é um espaço de opinião/sugestão do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Pode indicar-lhe outros filmes, músicas e/ou livros através do e-mail pcunha@mediacapital.pt. Siga-o no Twitter.