Por estes dias tenho pensado muito no senhor Joaquim, de Cavez.

Um senhor que ocupou dez segundos da minha vida há uma dúzia de anos ao irromper pela minha televisão com a mais sincera justificação que me lembro dos motivos para assistir a um jogo de futebol. Disse ele, textualmente, que estava ali pelas asneiras. Ouvir o povo falar. E só isso. «Tanto me vale que ganhe este, como aquele. Quero lá saber da bola», dizia.

Se ainda estiver entre nós, o senhor Joaquim será, necessariamente, uma pessoa mais triste no dia de hoje. Agora que veio a público que trocas de insultos entre claques ou até chamar gatuno ao árbitro é motivo para multa, o futebol parece-me diferente. A mim e, claro está, ao senhor Joaquim.

Chamar gatuno ao árbitro não é um insulto, é uma instituição. Acho que os próprios árbitros sentirão saudades, até porque a condição para o mimo nunca foi uma decisão errada. Foi uma decisão, apenas. Não interessa se é falta ou não. Apitou? É contra nós? Gatuno. Isto não é racional, é um reflexo condicionado.

E era assim que deveria continuar a ser visto.

O Conselho de Disciplina, naturalmente (e este é outro ponto caricato) a mando dos clubes, que criam as leis, transformou-se na ASAE. Eu não quero saber como é feita uma chouriça de sangue ou um queijo da serra. Vivi todos estes anos perfeitamente bem, desconhecendo tudo o que de menos higiénico poderá por lá haver. O sabor bastava-me.

O teste do algodão está, agora, nos estádios. Higienizar o futebol é tirar-lhe o lado sincero e humano. É tirar-lhe o povo, no fundo. Porque o povo não é perfeito. O povo diz palavrões, insulta o inimigo e até o amigo, se for preciso. Cumprimenta-o com um palavrão.

Eu, que sou do norte, confesso, não tenho nada contra palavrões. Dão-me muito jeito, até. Não sou homem de farto vocabulário e alguns deles servem como canivete suíço: dão para tudo. Usamos a mesma palavra e serve para elogio, para crítica, para repreensão, para manifesto de surpresa, para compreensão. Basta dar-lhe o tom certo.

Não tenho qualquer dúvida de que há palavrões bem mais bonitos do que a palavra palavrão.

Essa sim, incomoda-me. Quase ao mesmo nível de quem diz caramba, bolas, poças, raios. Palavrões de substituição, no fundo. Genéricos sem o mesmo efeito calmante e sem a mesma sinceridade.

Usá-los como insulto não é bonito, claro. Mas chamar parvo a alguém também não devia ser e, acredito, nunca levanta tanta indignação.

«SLB, SLB, SLB, vocês são parvos, SLB», já é coisa que se apresente?

«O Sporting cheira mal, allez oh», já é digno?

«Portista, escuta; não vales meia tuta», é aceitável?

Claro que tudo isto cai por terra quando se percebe que «lampião» foi inserido na mesma categoria. É insulto multável, imperdoável. 

Que fique claro que toda a minha argumentação assenta, apenas e só, na rivalidade. Racismo, por exemplo, é outra coisa bem mais grave, que não tem lugar num campo de futebol nem em qualquer outro lugar deste mundo.

O que se está a tentar fazer é, então, meter os insultos na mesma gaveta dos guarda-chuvas, garrafas com rolha ou os paus de bandeira. Artefactos do passado, sem lugar no futebol moderno, onde, contudo, continuam a entrar petardos. 

Tecnicamente, e isto que fique claro, não tenho qualquer dúvida que a reprimenda faz sentido. Mas é como a história da ASAE e do queijo da serra: se o risco é perder o sabor para sempre, prefiro a imperfeição.

Eu e o senhor Joaquim, certamente.