Há uma coisa que qualquer jornalista sabe que tem de abdicar a partir do momento em que abraça a profissão: o prazer de ser adepto. Sim, penso que não estou a dar nenhuma novidade se disser que é de todo improvável encontrar um jornalista que se dedique à área do desporto que não tenha ou teve uma predileção por um clube. É assim que se aprende a gostar de futebol em Portugal. E, como o ideal é que qualquer pessoa goste do trabalho que faz, acho até saudável que assim seja.

Vamos passar à frente a história de que uns jornalistas esquecem melhor o clube do que outros (digladiem-se aí na caixa de comentários se quiserem) e avançar para o essencial: ser adepto é passado para qualquer jornalista.

O que, no meu caso, não invalida que nutra por eles particular interesse. O seu comportamento, a sua forma de estar, as suas opiniões, as suas acusações e defesas. Tudo isto permitiu-me separar claramente duas estirpes: o adepto a sério e o adepto de ocasião. Naturalmente tenho mais respeito pelo primeiro. Naturalmente acho muita mais graça ao segundo.

O adepto de ocasião é facilmente identificável. Normalmente surge nos estádios com a equipa em bom momento, aproveitando o trabalho dos adeptos a sério nas fases mais complicadas. Veste camisola alternativa, pois não parece perceber muito bem a palavra legado. Nas costas, caso haja um nome, só há duas hipóteses: o craque absoluto e indiscutível da equipa que ninguém ousará criticar ou o nome próprio, porque é mais importante do que qualquer lateral direito desta vida.

No estádio é bipolar, conforme o jogo for correndo. A ação concreta «passe demasiado largo/passe intercetado» corresponde, invariavelmente, a um desabafo «ah era boa, era boa/ai se ela passa» nos primeiros 15 minutos. A partir daí, caso o resultado não saia do nulo, a mesma ação concreta vai, também invariavelmente, motivar reações distintas, até ao extremo «tira-me este gajo!». Nem que seja aos 20 minutos de jogo. Caso haja golo e, no lance seguinte, a mesma ação concreta «passe demasiado largo/passe intercetado», então lá voltamos ao inicial «ah era boa, era boa/ai se ela passa», iniciando um novo ciclo.

Regra fulcral para qualquer ida ao estádio do adepto de ocasião: nunca, sob circunstância alguma, ver um jogo até ao fim e, dessa forma, correr o risco de demorar mais 15 minutos a chegar ao conforto do lar.

O adepto de ocasião ainda hoje acha que Kelvin é só um miúdo que passou sem grande sucesso pelo FC Porto, que o Benfica de Jorge Jesus perdeu com o Gil Vicente e não entende como não o mandaram logo ali embora ou que o Sp. Braga conquistou a final da Taça ao Sporting de Marco Silva. Deixem-nos estar. Pelo menos no carro estava quentinho.

O adepto de ocasião usa as hashtags oficias do clube, retwita toda a provocação ao rival, aplaude o mais descarado camião de areia nos olhos de um dirigente, defende o paineleiro como se de um craque se tratasse, apoia totalmente o treinador se ganhar, quer vê-lo despedido após o primeiro empate em casa porque a equipa não tem uma ideia de jogo.

Não há nada mais vital para esta classe do que a ideia de jogo. Nem quatro golos na baliza adversária. Nem dez pontos de avanço na Liga. Nem uma fase de grupos imaculada na Champions. Importante é uma ideia de jogo. O que é isso ao certo? Não sabe/não responde.

O adepto de ocasião só vai a um jogo fora se não for muito longe, estiver por perto ou até está bom tempo para dar um passeio. Era incapaz de trabalhar um dia de forma gratuita para o clube mas sonha com o dia em que receberá o galardão para empregado do ano.

Esta espécie reproduz-se facilmente, pois o período de desenvolvimento é deveras mais rápido do que o do adepto a sério e, ao mesmo tempo, agrada mais ao clube. Ao contrário do adepto a sério, que é como aquele cliente regular que só bebe um café e ocupa a mesa a tarde toda porque gosta mesmo de lá estar, o adepto de ocasião petisca, lancha, bebe um gin premium e come umas pipocas em 80 minutos.

Depois volta ao calor condicionado da sofagem, enquanto sintoniza o rádio na estação que passa os hits da moda. Ao longe, um grito de golo que vira o jogo passa despercebido entre os primeiros acordes de «Lock out of heaven» de Bruno Mars.

O adepto de ocasião sorri: foi um dia feliz. O adepto a sério rejubila: foi o melhor dia do mundo.

«O GOLO DO EDER» é um novo espaço de opinião no Maisfutebol, do mesmo autor de «Cartão de memória». Porque há momentos que merecem a eternidade e porque nada representará melhor o futebol português, tema central dos artigos, do que o minuto 109 de Paris. Siga o autor no Twitter.