Podemos discutir resultados, mas não é fácil. Eles são a soma dos golos, não há grande matéria para embirrar.

Podemos discutir factos do jogo, mas também não é óbvio encontrar diferenças que mantenham a conversa acesa.

Poderíamos discutir as opções dos treinadores, as substituições, as estratégias, mas tudo isso, creio, nos parece hoje demasiado científico, fechado ou simplesmente aborrecido. Depende do comentador que ouvimos.

Restam-nos casos de arbitragem e conceitos menos definidos como «quem jogou melhor», «quem mereceu ganhar», «quem é melhor», «quem foi superior» ou até «quem foi muito, muito superior». Depois do clássico, Lopetegui foi por aí. Nunca vi um golo marcado da flash-interview. Mas é um bom lugar para influenciar conversas e análises. Vistos por largos milhares em simultâneo e a quente, aqueles minutos, embora escassos, podem ser aproveitados para passar mensagens, chamar a atenção para alguns aspectos e sobretudo preparar o próximo jogo. Na temporada passada, Paulo Fonseca, por exemplo, explicou-nos que estava de saída do FC Porto muito antes de ter saído. Apenas pela forma como estava na flash. O que o corpo dizia, o que os olhos passavam. A convicção, sobretudo a ausência de convicção.

(admito que não tenho provas disto, mas acho que o efeito de uma boa-flash-após-uma-derrota é o equivalente a marcar um golo perto do fim de um jogo que estamos a perder 3-0. Sair do campo com 3-1 faz-nos acreditar que não somos assim tão maus, afinal pode ter sido só um daqueles dias em que calçámos as meias do avesso e tudo saiu perfeito ao adversário)

Depois de perder em casa com o Benfica, o pior que pode acontecer a um portista e, já agora, a um treinador do FC Porto, Lopetegui afirmou a superioridade da sua equipa perante o rival e manifestou-se confiante de que no final o título será azul. Firme. Mas, afinal, ser superior é exatamente o quê?

O treinador do FC Porto utilizou expressões como «fizemos muitas coisas bem», «tivemos azar», «merecíamos um resultado diferente», «tivemos muitas oportunidades», «corremos muitos riscos». E concluiu: «O Benfica foi muito inferior em tudo menos no resultado». No dia seguinte, Tello, jogador espanhol do FC Porto, acrescentou um ponto ao partilhar as estatísticas do jogo. E lá estão os remates, os ataques, a posse de bola, tudo azul, tudo a sorrir ao dragão.

Ser superior é rematar mais? Criar mais oportunidades? Mas quantas mais? E o que é exatamente uma oportunidade de golo? A contabilização destes e de outros aspectos do jogo é algo relativamente novo no futebol. Os treinadores socorrem-se destes valores para preparar as partidas, estudar os adversários, melhorar a sua equipa. Aos adeptos são servidas versões simplificadas de um mundo pouco conhecido (veja como a coisa está a funcionar enquanto nós dormimos). Na cabeça de quem discute futebol, mais bola, mais remates, mais ataques é sinal de superioridade. Além de pouco útil, acho a aproximação pobre.

O futebol não tem nota artística. Jogar bem é o que o futebol tem de mais parecido com o gostei do filme, no cinema. «Sim, hoje até jogaram bem». E a seguir falamos do BES. «Sim, até gostei deste filme». E dali seguimos para a prisão de Sócrates. Podemos discutir quem foi o melhor a jogar bem, mas todos sabemos que isso nada alterará. É melhor mandar vir mais um copo e falar do tempo.

Pelo contrário, para um jogador pode ser útil sentir que jogou bem. Reforça a confiança no que treina. Nas suas capacidades e nas ideias do treinador. É mais útil do que pode parecer. Perdemos, sim. Mas jogámos bem. Isto é o equivalente ao nosso «eu até tinha estudado isto, tive foi azar, saiu outra matéria», quando passámos na escola. E se jogámos bem não é preciso colocar tudo em causa.

Deve ter isso que Lopetegui tentou. Perdeu, mas gritou alto, para todos ouvirmos, o «jogámos bem». E se o FC Porto jogou bem, como o treinador exibe, talvez ainda seja possível conquista a Liga, como também admite. Logo, consequência, não vale a pena pensar em mudar o que está bem. Apesar da derrota.

O «jogámos bem», dito assim, é o livro de autoajuda. É o ombro do amigo. É um daqueles telefonemas que duravam dois dias, na nossa adolescência. É o que nos resta quando tudo o mais já não existe. É a resposta à pergunta de questionário de Verão («O que levava para uma ilha deserta?»). Lopetegui, na impossibilidade de levar os três pontos com o Benfica, levaria o «fomos muito, muito superiores».

Mas na verdade os treinadores sabem que ser superior, no futebol, é algo muito diferente.

Eles sabem, por exemplo, que não cometer erros graves é mais importante do que fazer coisas espantosas com a bola. Pode até ser mais importante do que ter a bola. E o FC Porto cometeu erros. O primeiro um erro infantil, um erro de escola primária. O segundo um erro de cobertura defensiva. Se calhar ainda mais grave. Por ser o segundo, por aparecer quando a concentração devia ser máxima e nada de errado podia suceder. Depois houve também os erros no ataque. Enfim, houve erros.

O FC Porto foi superior a cometer erros. Foi melhor a cometer erros, arrisco. Infelizmente cometer erros raramente é bom. Num jogo de futebol pode até ser fatal.

Ser superior, no futebol, é algo muito diferente da tabela estatística que Tello partilhou. E se Tello ainda não percebeu, talvez Lopetegui tenha mais trabalho pela frente do que apenas preparar o próximo jogo. No futebol ninguém é superior quando perde. Porque isso simplesmente não existe.

Admito que uma vez ou outra esteve quase. Mas domingo passado, no Dragão, não foi uma dessas vezes. Lembro-me de um jogo em que isso esteve quase a existir. Disputou-se em Estugarda, na Alemanha. Portugal colocou toda a gente atrás. Manuel Bento foi deus. Os postes estiveram do nosso lado. E apareceu Carlos Manuel. Os alemães massacram a nossa baliza, sem piedade. Foram superiores? Não. Apenas pareceram superiores.

(O Brasil e a Itália em 1982, não é? Estava a pensar nisso? Faz bem. É um caso que reforça esta ideia. O Brasil pareceu sempre superior. Mas a Itália era de facto superior. Trinta e dois anos depois já podemos admiti-lo, certo?)

Este FC Porto, o de domingo, de facto pareceu superior. Mas se Lopetegui acredita mesmo que pode partir daqueles 90 minutos para ganhar o campeonato é muito provável que não esteja a ver todo o quadro. O Benfica é aquela equipa que falha pouco em casa (sim, aconteceu esta quinta-feira, mas não deixa de ser raro) e marca sempre golos. E esta é a Liga portuguesa. Aqui jogar bem não chega. Este FC Porto de facto joga bem, sem itálicos. Eu gosto. Mas ser superior é outra coisa, Tello.

(sobre o clássico, já tinha escrito isto sobre Jesus e isto sobre Lopetegui)

(claro que isto não se aplica apenas a Lopetegui. Óbvio. Basta ver o que disse Jesus depois de perder com o Sporting de Braga, para a Taça de Portugal)