Bem sei que à medida que a idade avança vamos perdendo a inocência, mesmo assim caiu-me tudo com esta notícia de que o Tony Carreira não será o legítimo autor de «Sonhos de Menino».

Daqui em diante, quando ecoar na Pedreira o cântico «Do Sp. Braga tenho orgulho de ser» o meu subconsciente passará a reportar a melodia ao tema original «L’Idiot», do francês Hervé Vilard, e não a Tony, cuja carreira acaba de ser abalada pela acusação de plágio em onze músicas.

Fenómeno semelhante terá acontecido há tempos com o líder/letrista da claque portista Colectivo. Vi-o na televisão contar que, como tantas outras claques (ou grupos de adeptos organizados, vá), adaptou a letra de um cântico argentino para «Força Grande Porto (Perderam Tudo aos 92)». A ficha só lhe caiu quando um tio seu reconheceu a melodia de um qualquer bailarico e lhe deu o toque: «Ouve lá, sabes que isto que tu cantas é igual ao “Cara de Cigana” do José Malhoa, pá?»

Interessante isto de a mesma melodia vir de longe e por duas vias distintas singrar no meio pimba e no mundo ultra, nas plateias e nas bancadas.

Passará por essa transversalidade o segredo do futebol e da música, que dão a volta ao mundo como fenómenos populares.

Quando em 1963 a dupla Rodgers e Hammerstein popularizou «You’ll Never Walk Alone» não imaginaria que o tema se tornasse imortal nas versões entoadas de forma arrepiante nas bancadas de Anfield, do Celtic Park ou no Wesfallen.

Estou convencido de que todos os clubes andam à procura do seu tema-bandeira. O Sporting conseguiu-o, revisitando Sinatra para tornar «My Way» em «O Mundo Sabe Que». Em Guimarães, o Vitória também foi feliz na adaptação «Sou Vitória» do tema original «Sailing» do ilustre adepto do Celtic Rod Stewart – que, diga-se em abono da “causa Carreira”, foi processado por plágio por Jorge Ben Jor, autor de Fio Maravilha e de outros temas populares sobre futebol, pela inspiração em «Taj Mahal» para criar «Do You Think I’m Sexy».

O futebol tudo pode. Não é sacrilégio pegar em nomes sagrados ou ilustres desconhecidos da música e escangalhar-lhes obras-primas ou canções foleiras com o máximo propósito de animar o povo na bancada e a equipa no relvado.

Acho bem que José Mourinho e Nélson Puga tivessem reescrito os versos da Quinta do Bill para criarem «Os Filhos do Dragão». Todo o apoio também a Júlio Panão, um desses adeptos que fazem parte do maravilhoso folclore do futebol luso, para que continue a entreter-se a transformar hits latinos em canções de apoio ao seu Benfica.

A música, original ou adaptada, faz parte da festa. Exceto um tema, pelo menos, que quando entoado é sinal de que a harmonia entre equipa e adeptos já desafinou.

Ainda estamos em setembro, mas antes da temperatura arrefecer já os ânimos aquecem.

Começa o tempo de as câmaras de TV estarem a postos para focar meia dúzia de adeptos, concentrados à porta de um estádio ou na zona de chegadas do aeroporto. Juntos, contestarão a equipa. Cantando, darão o seu cunho pessoal a Guantanamera:

Joguem à bola,

Palhaços, joguem à bola.

Joguem à booooola,

Palhaços, joguem à booooolaaaa...

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.