Podemos considerar que o que distingue cada clube é a cor e a camisola. Ou então divertirmo-nos a contemplar, exaltando um por um, cada pormenor daqueles que se fazem as grandes diferenças.

Ao FC Porto reporto-o a D. Pedro IV, mesmo tendo ele morrido antes de o futebol ter sido inventado.

Na verdade, é por culpa dele e da atribuição do dragão da sua Casa de Bragança – e da palavra Invicta – ao brasão da cidade, adotado pelo clube em 1922, que o animal mitológico viria a tornar-se em símbolo portista.

Olhando com atenção, é o coração dele, por sua vontade doado à cidade e guardado na Igreja da Lapa, que pontifica bem lá no centro do emblema que futebolistas e adeptos carregam ao peito.

D. Pedro IV esteve do lado certo da história, ao defender o liberalismo, lutando e vencendo os absolutistas do seu irmão D. Miguel.

Mais do que isso, encarnou como poucos o espírito de «fazer das tripas coração» ao resistir nas trincheiras, no centro da cidade, ao Cerco do Porto, durante mais de treze meses, até ao triunfo final na guerra civil de 1828-1834.

Passando do campo de batalha para o campo de jogo, é dessa mentalidade de resistente, de estoicidade e superação que se forjam os melhores FC Portos da história.

Houve, ainda assim, um tempo bem recente em que o FC Porto se aburguesou, traindo a sua natureza – ADN ou mística, como preferirem.

Havia um deslumbramento com o sucesso. Conquistas internacionais bem frescas na memória e a naturalidade de vencer por cá como quem muda de camisa ou «quem vai ao supermercado» – expressão de Alex Ferguson que ainda hoje é deturpada pela propaganda dos rivais.

O FC Porto ganhou muito dinheiro e depois gastou-o: a rodos e, muitas vezes, sem grande critério. Promovia com o devido marketing lemas como «vencer é o nosso destino», pelo que a soberba haveria de transbordar de dentro para fora e contaminar os adeptos.

Na última celebração de um título de campeão conquistado pelo FC Porto, em 2012/13, havia espantosamente um número considerável a assobiar o treinador, cuja equipa sofrera apenas uma derrota em dois campeonatos seguidos.

Vencer já não bastava. Era sempre preciso mais qualquer coisa.

Mal habituado, o público do Dragão era o mais exigente cá do retângulo. Nas bancadas, a cada passe errado, uma assobiadela monumental. Mais parecia público de ópera: a mínima desafinação da soprano era reprimida com uma sonora pateada.

Até que o FC Porto deixou de vencer. E aí foi alternando os estágios de convulsão e negação com investimentos desenfreados e uma estratégia errática.

Até que chegou a fatura de tudo isso.

Até que, no defeso menos prometedor dos últimos anos, haveria de chegar Sérgio Conceição.

O contexto não era fácil: para regressar a casa, Sérgio comprou uma guerra com o Nantes, mesmo trocando quatro milhões por época por um salário bem inferior. Aceitou as contingências de, com as restrições financeiras impostas pela UEFA, não poder reforçar a equipa; e, mesmo assim, apontou lá para cima, fazendo a promessa solene de que haveria de festejar o título em maio. Em suma: arriscou tudo, numa sociedade em que quase todos evitam o risco e jogam sempre pelo seguro.

«Se o FC Porto estivesse a ganhar, ele não vinha de certeza. O facto de a equipa estar há quatro anos sem vencer, a passar por dificuldades… Isso mexeu com ele. Foi isso que o fez vir. Foi o desafio», contou-me por estes dias um amigo próximo do treinador do FC Porto.

Sérgio chegou para reconciliar o FC Porto com o seu ADN, de, no meio das dificuldades, «fazer das tripas coração».

Os adeptos, que já haviam tomado o purificador banho de humildade, voltaram a ser mais Geraldinos e cada vez menos Arquibaldos – e, percebendo a delicadeza do momento, regressaram aos milhares com um apoio incondicional e avassalador.

A grande vitória de Sérgio Conceição foi, acima de tudo, ter-se tornado na personificação da tal mística que historicamente se alicerçou em fazer das fraquezas forças.

Superando condicionalismos próprios e erros alheios, onze meses depois da sua apresentação, Sérgio cumpriu a promessa: haveria de ser ele a comandar as tropas que furaram o cerco e venceram uma das mais simbólicas batalhas dos últimos tempos no futebol português.

Sábado, a equipa do FC Porto volta merecer honras de uma receção nos Paços do Concelho, 19 anos depois. E, numa daquelas coincidências involuntárias, a celebração estender-se-á até à Praça da Liberdade, em torno do monumento a D. Pedro IV.

Quanto a Sérgio Conceição: no estádio ou no museu, bem podem tratar de fazer-lhe uma estátua. A nação portista já há muito lhe doou o seu coração.

--

«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.