«Pode falar-me em francês ou até em português, mas em castelhano não respondo», disse-me em catalão um idoso na Plaça Sant Jaume, quando lhe perguntei que bandeira era aquela de cruz vermelha em fundo branco, que ele fazia esvoaçar entre senyeras, de quatro barras apenas ou estreladas de conotação independentista.

Apesar de estar numa manifestação no epicentro do poder local em Barcelona, com o edifício do governo autónomo defronte ao da autarquia, estranha-se a bizarria de haver alguém que em Espanha se recusa a falar espanhol.

Foi há dez anos. Porém, esta semente do nacionalismo catalão germinou ao longo de séculos até eclodir este domingo num 1 de outubro negro, com a Guarda Civil e a Polícia Nacional espanhola a agredirem cidadãos, reprimindo o seu direito a votar.

Resultado: 893 feridos.

Ponho o referendo na perspetiva defendida por Pep Guardiola: «Não é uma questão de independência, mas de democracia.»

Num estado europeu e democrático no século XXI pede-se que um povo possa livremente decidir questões como a autodeterminação – como o fez o Quebec em 1995 ou a Escócia em 2014, que até recusaram tornar-se independentes. Por outro lado, pede-se a governo central que não se escude numa Constituição do pós-franquismo para evitar debater um problema latente.

Chego até aqui para falar do Futbol Club Barcelona.

Apesar de cumprir o seu papel de aliado da causa catalã, o Barça é também involuntariamente seu adversário.

Há uns anos, numa entrevista com direito a perguntas do público, Carod Rovira, ex-líder da Esquerda Republicana Catalã, respondia habilmente a todas as perguntas sobre um possível novo estado independente, que o seu partido defendeu desde a primeira hora. Até empancar numa simples questão colocada por uma jovem: «E o Barcelona? Com a Catalunha independente em que campeonato jogará?»

«Bem… Er… Pode jogar na Liga Francesa, por exemplo, ou até em Portugal», respondeu sem convencer ninguém.

Precisamente esse fantasma continua por estes dias a ser agitado por Javier Tebas, presidente da Liga Espanhola.

No entanto, apesar de uma eventual independência catalã não lhe servir económica ou desportivamente (tampouco serve à Liga Espanhola), o FC Barcelona não se escudou numa neutralidade aconselhável no mundo dos negócios, sobretudo no das marcas globais.

Perante a violência policial e o clima de guerra provocado pelo referendo, o clube tentou, sem sucesso, adiar o jogo contra o Las Palmas. Em alternativa, fechou as portas do Camp Nou, entrou em campo com as cores da Catalunha e substituiu o resultado nos ecrãs gigantes por uma palavra: democracia.

Camp Nou: o mesmo estádio que durante o franquismo era o único espaço público onde se falava catalão sem receio de represálias. Aquele recinto onde, em 1970, um penálti assinalado por Emilio Guruceta a favor do Real Madrid, por uma falta fora da área (em jogo da Taça Generalíssimo, predecessora da Taça do Rei), se transformou numa invasão de campo (e num relvado coberto de almofadas de assento): uma contestação impensável em tempos de ditadura, que se estendeu até à Font de Canaletes, nas Ramblas, e durou até de madrugada.

Ao tomar posição neste conflito o Barça honrou Josep Sunyol, presidente do clube e republicano assassinado em 1936 na Serra de Guadarrama, nos arredores de Madrid, pelos falangistas de Franco durante a Guerra Civil Espanhola. Honrou a sua missão de porta-estandarte da Catalunha à escala mundial. Honrou, sobretudo, o seu papel histórico de combate ao centralismo de Madrid.

Sorrio quando ouço alguém dizer que o futebol não se mistura com política. Pois que outra coisa é o futebol senão uma explicação alternativa deste nosso mundo? Que outra coisa pode ser um clube senão uma representação político-social da realidade em que está inserido?

Se assim não fosse, como se distinguiriam entre si os clubes: pelas cores das camisolas apenas?

Não estranhem pois quando virem o Barça a desempenhar o seu papel – desportivo, sobretudo, mas político também. Associando-se, por exemplo, à greve geral na Catalunha desta terça-feira.

A propósito, a tal bandeira era a de Sant Jordi (padroeiro da Catalunha e, por exemplo, nome escolhido por Johan Cruijff para batizar o seu filho – nada disto é por acaso). Tal como a senyera, esse estandarte faz parte do escudo da cidade e também do símbolo do FC Barcelona.

Digam que o futebol nada tem que ver com política e eu respondo: como poderia quem tem por lema «Més que un club» renegar o seu ADN?

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.