Cada jogo na escola primária da Praça da Alegria começava com o mesmo ritual: escolher o clube e o jogador que íamos representar durante a meia-hora de recreio. Os meus escolhiam sempre o Milan e eu era quase sempre o Ruud Gullit. Porque gostava das trancinhas, sim, e também porque um dos primeiros grandes golos de que me lembro foi um do meio da rua em que ele toca de cabeça, mata no peito e enche o pé de fora da área.

Na verdade, eu escolhia o Gullit porque já era esperto o suficiente para saber que os outros miúdos iam em uníssono escolher o Van Basten e que todos exceto um iriam ficar com as sobras de terem de ser o Rijkaard ou o Baresi, com sorte, ou contentarem-se com o Massaro ou o Tassotti.

Eu, rapaz prevenido, garantia logo ali o meu quinhão do trio maravilha holandês.

Portanto, como pseudo-Gullit na infância tenho autoridade moral para me virar para o Marco van Basten da vida real e dizer-lhe que ele não estará bom da cabeça depois de na semana passada, investido no seu novo cargo de diretor técnico da FIFA, ter começado a debitar possíveis alterações às regras do futebol.

Fim do fora de jogo, penalizações de tempo em vez de cartões amarelos, penáltis substituídos por shootouts em 25 metros... Para abrir o debate, Van Basten veio a público defender medidas deste calibre. E com base em quê? «Tenho muita curiosidade em perceber como funcionaria o futebol sem o fora de jogo.»

Por curiosidade, diz ele.

Hey, Marco, queres ideias giras inventadas agora mesmo para acrescentares à lista?

Vamos lá, então:

Cada equipa passa a ter 24 segundos para atacar e caso acerte no ferro tem direito a mais 24... Substitui-se os penáltis e até os shoothouts por desempates em que cada jogador faz um remate rasteiro de longe com a baliza aberta e dois companheiros de equipa com esfregonas alisam o caminho da bola… Dá-se ao árbitro a possibilidade de poder tirar de campo um jogador desde que, correndo de costas, lhe consiga acertar com um valente encontrão… Enfim, a imaginação é o limite.

É giro, é curioso, mas não faz sentido nenhum isto de pretender fazer experiências com o desporto mais popular do mundo, cujas regras sofreram ligeiríssimas alterações ao longo de mais de um século.

Concedo no chip na bola, porque desfaz dúvidas em segundos sem quebrar o ritmo de jogo. Tudo o resto, de vídeo-árbitros que demoram dois minutos a decidir um lance ao radicalismo vanguardista das propostas de Van Basten é um abastardamento da essência do futebol.

Tal como o é, no plano competitivo, o Mundial a 48 seleções que a FIFA acaba de perfilhar, privilegiando a vertente comercial e até eleitoral em prejuízo do nível desportivo.

Salvem o futebol dos experimentalistas. Que alterem leis civis e criminais, muito bem. Agora, futebol? Isso é demasiado sério, amigos.

Marco, deixa isso das «regras novas» para os miúdos que jogam no recreio.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.