Há uma linha de argumentação muito em voga no comentário futebolístico nacional que começa assim: «Como é possível que “no país campeão do campeão da Europa”…?» E vai por ali fora, servindo de intróito para uma dissertação sobre o clima que se vive no futebol português.

Entendamo-nos bem: longe de ser uma novidade, a crispação e suspeição são criticáveis, desde logo porque nos fazem viver em constante desconfiança sobre o jogo. Nisso, todos de acordo.

Falta, no entanto, às considerações gerais sobre o ambiente (que no fundo são a consequência) juntar motivos concretos (as causas) que o propiciam, de modo a que a análise seja completa.

Caso contrário, é como limitarmo-nos a constatar o calor abrasador de finais de outubro sem valorizar as razões que provocam as alterações climáticas.

Não entendo também esta aparente incompatibilidade entre o estatuto de «país do campeão da Europa» e a possibilidade de haver escândalos, casos, discussões (desde as ocasionais de café até às preparadas de forma profissional para serem debitadas num estúdio de televisão).

Aquele pontapé abençoado do Eder tornou-nos intrinsecamente melhores jornalistas, comentadores, adeptos, dirigentes?

Tornámo-nos livres de todas as desconfianças, fundadas ou não, sobre as nossas competições por a Seleção Nacional ter vencido o Euro?

Essa incompatibilidade não existe, mostra-nos Itália, a pátria de Paolo Rossi, que antes de com os seus golos levar a Squadra Azzurra a sagrar-se tricampeã mundial em 1982 esteve suspenso por dois anos acusado por envolvimento num esquema de apostas. Pátria também do Calciopoli (ou Calciocaos), cujas acusações por corrupção desportiva a Juventus, Milan, Lazio, Fiorentina e Reggina foram deduzidas cinco dias depois de a seleção transalpina se tornar tetracampeã mundial em 2006.

Mesmo sublinhando a aspiração a um futebol melhor (nisso, de novo, todos de acordo), não subscrevo o argumento de autoridade do «país do campeão da Europa»; nem o seu predecessor «o país do melhor jogador e do melhor treinador do mundo…»

A minha bitola é outra e, por estes dias, a minha preocupação também.

Há problemas mais concretos e prementes, embora quase desconhecidos. Há, por exemplo, que acudir ao Pampilhosense.

Estranho que pouco tenhamos ouvido falar sobre eles, não é? Talvez por não terem tido uns minutos sequer nas cerca de 40 horas semanais de programas de entretenimento desportivo das televisões.

Por estes dias, o Pampilhosense treina no pedaço de campo sintético que não foi destruído pelos incêndios de 15 de outubro, que só neste concelho dizimaram 20 mil hectares de floresta e mais de 200 habitações, provocando uma vítima mortal e vários feridos.

Sem campo onde jogar, o clube depende da boa vontade dos adversários para inverter as jornadas nos distritais de Coimbra e enquanto for possível jogar fora as suas partidas.

A história pode conhecê-la aqui. Porém, o drama desta gente pode ser resumido pelas palavras Jorge Ramos, treinador-adjunto da equipa e bombeiro voluntário, que no dia do grande incêndio esteve a apagar as chamas no estádio onde vive futebol no dia-a-dia: «Fomos jogar a Oliveira do Hospital e tivemos de voltar por atalhos para escapar. No regresso, ligaram-me a dizer que o incêndio tinha entrado no nosso concelho e não havia meios disponíveis. Foi chegar a casa tirar o fato de treino e vestir a farda. Dei um beijo ao meu filho de quatro anos e fui para o fogo…»

Depois de colocar a vida em risco sem poder salvar o campo, Jorge tem agora a preocupação diária de encontrar um sítio alternativo para a equipa treinar à noite, nem que seja em Coimbra, a 90 quilómetros distância.

Dado que a prioridade da autarquia é, naturalmente, recuperar as habitações de quem ficou desalojado, não há expetativas sobre a reconstrução para breve do Estádio Municipal da Pampilhosa da Serra.

Como é possível que no futebol e em tudo o resto haja quem no «país real» seja assim deixado à sua sorte?

É demasiado ambicioso esperar para situações como esta uma solução nacional, tal como a dimensão da tragédia exige?

Esta questão não deixará de fazer sentido, mesmo considerando a boa iniciativa da Federação Portuguesa de Futebol em mudar os locais dos próximos jogos particulares da Seleção Nacional para Leiria e Viseu (nas regiões mais afetadas pelos incêndios) e doar parte das receitas às vítimas.

Num país europeu que se preze, campeão ou não, jamais devia de haver clubes que para treinar não tenham mais do que o pedaço de campo que escapou ao fogo.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.