Ao fim de cada jogo, o mesmo ritual: Nuno Manta desce do púlpito e, terminada a conferência de imprensa, vem cumprimentar os jornalistas. Um por um.

Parece simples, mas, num meio em que os egos se agigantam, toca-me o respeito e a singeleza dos pequenos gestos.

Na penúltima conferência dele em que estive, após um jogo em tarde de temporal, só no final se percebeu que estava todo enlameado até aos joelhos. Sorrindo, disparou algo do género: «É para vocês verem o que um treinador sofre.»

Melhor é o episódio do meu camarada de redação João Tiago Figueiredo, a quem o mister disse, ao sair do estádio, enquanto dava à chave do seu velho Clio: «Vou pôr o meu "clássico" a aquecer…»

O treinador do Feirense age como a sua equipa joga: de forma simples e direta, sustentando-se em trabalho e luta. Com um plantel curto e um campo acanhado não poderia ter, aliás, grandes pretensões artísticas.

Convém referir que, nestas linhas, Manta – com quem nem tenho especial relação de proximidade, esclareço – representa bem mais do que ele próprio. Podia dirigi-las também a Daniel Ramos, um treinador com notável franqueza no discurso, que subiu a pulso no futebol português e que, chegado à elite, revelou conhecimento e pragmatismo para colocar um Marítimo com menos recursos do que os adversários a lutar pela Europa pela segunda época consecutiva.

O exemplo de Nuno Manta toca-me sobretudo pela forma como, com a equipa em aflição no fundo da tabela há largos meses (17.º lugar, com 24 pontos, oito derrotas nas últimas dez jornadas), ele mantém uma admirável correção e encara a adversidade com um sorriso, intercalado pela emoção que lhe percebi no rosto ao empatar nos descontos com o Sp. Braga.

Sábado, depois da conferência, lá voltou ele a percorrer toda a sala de imprensa para cumprimentar os jornalistas. Um por um.

Meia hora depois, à saída, ainda o vi no estádio a conversar com funcionários do clube. Manta é um filho da casa e talvez seja também por isso que o Feirense seja o único clube dos cinco últimos classificados da Liga que ainda não mudou de treinador nesta época.

Deixei de ter como prioridade ver ainda alguma coisa de outro jogo que passava na televisão a essa hora, voltei para trás, interpelei-o e conversámos por momentos. Falou-me da importância de vencer: o próximo jogo e todos os outros que se seguem para ficar na Liga. Desejei-lhe felicidades.

Não lhe disse, porém, como aprecio que as dificuldades em que vive lhe evidenciam ainda mais o carácter. Que observo a luta pela manutenção, sua e dos seus adversários, como mais justa e leal do que outras. Que no sufoco do fundo da tabela, curiosamente, se respira melhor, por o ar ser aparentemente mais puro.

Talvez porque, no fundo da tabela, o futebol não ceda tanto espaço a novelas, a jogos de xadrez ou a exercícios de spinning. Talvez pela menor pressão mediática, que chega a fazer-nos entrar ouvidos adentro, ao vivo e em direto, narrativas que distorcem evidências que os nossos olhos veem.

O passou-bem de Nuno Manta é dos gestos mais dignos e genuínos que há no futebol português.

No fundo da tabela há mais cumprimentos e menos mãos invisíveis.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.