Dos milhões de caracteres que estes dedos já escreveram, os únicos que me levaram a ter de prestar declarações numa esquadra têm que ver com o Vitória.

Havia uma queixa contra desconhecidos por um ataque com cocktails Molotov à Casa que o FC Porto tentou inaugurar em Guimarães. Em reportagem no Largo do Toural pedi o testemunho a um grupo de senhores de idade, mas de onde esperava temperança veio radicalismo: «Aqui é tudo preto e branco, amigo! É incendiar aquilo…»

«É uma hipérbole, senhor agente. Um desabafo inconsequente de senhores de idade», expliquei, quando confrontado com estas palavras preto no branco.

Já lá vai uma década, a verdade é que a Casa existe, até já mudou de morada, mas por questões diplomáticas nunca foi inaugurada.

A intimidação é reprovável, sem dúvida; no entanto, neste caso, vejo-a sempre como o reverso da medalha da paixão pelo clube da Cidade Berço, que de tão exacerbada não demora em transformar-se em repúdio pelos que, ainda que figuradamente, a querem conquistar.

Condenando este e outros exageros, confesso que admiro o Vitória. Num país de bancadas vazias, de clubes pequenos instrumentalizados pelos grandes, este é o melhor exemplo – não o único – de fervor clubístico fora do trio que todos conhecem.

O Sp. Braga vai aos poucos percorrendo o caminho para conquistar a sua cidade; Boavista e Marítimo têm bases de apoio sólidas; um patamar abaixo vemos milhares nas bancadas a torcerem por Académica ou Famalicão… Mais abaixo ainda até ao Salgueiros, cheio de alma, tem muita gente a apoiá-lo e tenta regressar ao lugar que lhe pertence.

Clubes com adeptos, a Primeira Liga é o lugar que vos pertence!

No entanto, é o Vitória o expoente deste fervor – com uma legião de milhares de adeptos que o acompanha em casa e nas deslocações. O grande que for a Guimarães sabe que vai ter mesmo jogar fora, que terá de enfrentar um ambiente vivo e hostil. Pela frente terá um estádio quase cheio com 30 mil adeptos – o que não deixa de ser notável, numa cidade de 55 mil habitantes e num concelho de 150 mil.

No fundo, quem lá for sentirá na pele o que se reproduz neste vídeo, da recente receção ao FC Porto, que me faz admirar um pouco mais o Vitória:

Em Guimarães não se ouve o eco dos jogadores em campo, ouvem-se ensurdecedores cânticos nas bancadas. E provocações. E insultos. E pressão, pois claro. Mas vive-se futebol.

O que é natural noutras paragens, não deixa de ser admirável por cá.

Perante o cenário desolador de tantos estádios pelo país fora, órfãos de adeptos que preferem fazer dezenas ou centenas de quilómetros para apoiarem um clube longe da sua casa, faço constantemente esta indagação: o que faz alguém pertencer a um clube? Hereditariedade? Historial? Também. Mas haverá sem dúvida uma fortíssima identificação territorial.

Quer isto dizer que não existem adeptos dos grandes no Berço? Existem, pois. Não são livram é do epíteto de “Vitorinos” – sem o “a” de um “Vitoriano” legítimo – quando têm o coração dividido. Esses jamais poderão afirmar com propriedade e à boca cheia a eterna graça de que «Portugal é Guimarães; o resto são conquistas». Esse é um grande feito de um clube cada vez maior.

Pequenos de Portugal, ponham os olhos no Vitória: conquistem o vosso lugar no futebol português.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.