Contei-os. Foram 52 minutos de hesitação até que, perante o risco de uma bancada ruir debaixo dos pés de três mil adeptos, fosse tomada a decisão evidente: suspender o Estoril-FC Porto.

Quando se demora quase uma hora a decidir se se põe ou não em risco a vida de tanta gente, o que está em causa é bem mais do que os alicerces de uma bancada: a fissura é bem mais estrutural.

Todo o episódio é uma sucessão de irresponsabilidades. Como há séculos escreveu Sá de Miranda, «M'espanto às vezes, outras m'avergonho». Mas vamos por partes.

Espanto e vergonha – parte 1: a fazer fé nas palavras do ex-vereador do desporto da Câmara de Cascais e do ex-administrador da SAD do Estoril, em declarações ao Maisfutebol, aquela bancada foi construída em leito de cheia, sobre um ribeiro, num terreno pouco estável, em zona de reserva agrícola. Como não sou especialista na matéria, consultei a opinião de um engenheiro civil e, aparentemente, o abatimento ocorrido deve-se ao facto da laje térrea ter cedido, devido à instabilidade do terreno e à desconformidade das fundações.

Espanto e vergonha – parte 2: apesar de ter sido construída há menos de três anos e meio, a bancada norte do estádio do Estoril já apresentava fissuras e rachadelas consideráveis, que aparentemente foram sendo remendadas com argamassa. Ainda assim, apesar da evidente deterioração, a infraestrutura continuou a passar em vistorias da Liga e a ser considerada apta para receber milhares de adeptos.

Espanto e vergonha supremos – parte 3: já depois de três mil adeptos do FC Porto terem sido devidamente evacuados para o relvado, houve, com o devido acompanhamento dos dois delegados da Liga, quem os tentasse encaixar na bancada de sócios do Estoril, primeiro, tendo depois havido uma surreal ordem para regressarem à bancada em risco. Um e outro passo não cumprem regras básicas de segurança.

De acordo com testemunhos que ouvi a viva voz e pelas palavras de um repórter televisivo na noite de segunda-feira, houve um responsável de segurança que encaminhou toda aquela gente com a seguinte justificação: «Podem voltar para a bancada. Estas fissuras já cá estavam... Já cá estiveram os engenheiros e não se passa nada.» É quase o equivalente a dizer «Isto é a bancada a fazer ronha. Pomos aqui este spray milagroso, que costumamos de pôr sobre as caneleiras dos jogadores, e… prontinha! Vejam como já está impecável», enquanto se esfrega o pilar com a manga do casaco.

Sim, houve gente a voltar a sentar-se numa bancada em perigo, minutos depois desta ter sido evacuada. Não, não houve qualquer vistoria-expresso, que permitisse em tão curto espaço de tempo tomar uma decisão de tamanha responsabilidade.

No meio desta confusão, o mais espantoso é ver uma competição profissional hesitar entre este «desenrascanço chico-esperto», profundamente negligente, e a única atitude possível, a de suspender o jogo.

No meio desta confusão, dois elogios. Aos adeptos – aqueles que, do Norte ao Algarve, fizeram centenas de quilómetros em dia de trabalho para verem um jogo no Estoril às 21 horas de uma segunda-feira – aos que colaboraram com as autoridades, sem pânico ou precipitações. E a jornalistas, como o David Marques e o Luís Pedro Ferreira, do Maisfutebol, que no terreno fizeram o seu trabalho – aliás, o seu e até involuntariamente o de outros, que em mais uma prova do «chico-espertismo» nacional se apropriaram, por exemplo, destas fotos, como se fossem de sua autoria, fazendo manchetes e diretos televisivos sem referirem a fonte.

Fosse eu assessor de comunicação e estaria em modo damage control a verter justificações para comunicados. Sendo jornalista, faço perguntas. Há uma que não me sai da cabeça: E se na noite de segunda-feira houvesse um golo do FC Porto e três mil adeptos celebrassem efusivamente naquela bancada?

Escusado será recordar o historial negro de tragédias nos estádios do futebol mundial. Escusado será salientar que, esta semana, em Vila Nova da Rainha (Tondela), por falta de condições de segurança num edifício, oito pessoas morreram e 38 ficaram feridas num pacato convívio em torno de um torneio de sueca.

Será então de questionar, agora e sempre, se haverá responsáveis por decisões negligentes que terão sido tomadas neste caso da bancada do Estoril. 

O simples risco de poder ter acontecido uma tragédia é, por si só, suficiente para que a culpa não morra solteira, certo? Ou a única resposta será encolher os ombros e passar ao próximo caso, num implícito reconhecimento que, no fundo, isto são só mais umas fissuras estruturais do futebol nacional?

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.