Ao entrar em campo este domingo, nos últimos minutos da vitória do Real Madrid Castilla sobre o Conquense, em jogo da II divisão B espanhola, o jovem Enzo Zidane tornou-se mais um elemento num pequeno capítulo à parte na história do futebol: aquele que as carreiras de pais e filhos se cruzam num dado momento, quando um orienta a equipa e o outro joga sob as suas ordens. A julgar pela experiência de quem passou pelo mesmo, desengane-se quem pensa que alguém fica com a vida facilitada.

Em Portugal e no estrangeiro não faltam precedentes ilustres: ainda na semana passada, a antiga estrela do futebol sueco, Henrik Larsson, assumiu o comando técnico do Helsingborgs, onde joga o seu filho Jordan, avançado promissor de apenas 17 anos. É um reencontro, visto que há um ano, quando iniciou a carreira de técnico, Henrik já tinha trabalhado com Jordan, então no Hogaborgs, do terceiro escalão.


Henrik e Jordan Larsson, há dez anos

Na Holanda, Danny Blind irá suceder a Guus Hiddink no cargo de selecionador, o que levará a sua relação com o filho Daley, craque do Man. United, a outro patamar: de 2010 até agora, no Ajax e na Seleção, Danny habituou-se a trabalhar com o filho, mas sempre na condição de treinador adjunto.

Cesare e Paolo Maldini trabalharam assim na seleção italiana, numa fase das respetivas carreiras em que os estatutos os tornavam imunes a críticas e suspeitas. Já Alex Ferguson acompanhou a carreira do filho, Darren, desde os escalões de formação até à primeira equipa do Manchester United, mas não lhe permitiu o passo seguinte, libertando-o para o Wolves.



Maldini, pai e filho, na «squadra azzurra»

E a sombra tutelar de Johann Cruijff pesou sempre na carreira do filho Jordi, apesar de este ter chegado a internacional e de ter jogado no Manchester United, já depois de ter sido lançado pelo pai no Barcelona, por entre fortes críticas que nunca superou totalmente.


Jordi e Johann Cruijff: é complicado...

Há desfechos para todos os gostos nestas histórias, mas entre casos de sucesso e situações problemáticas, uma coisa é certa: quem já passou pela experiência não recomenda. É o caso de Mário Wilson, um médio de boas qualidades técnicas que nas décadas de 70/80 assinou uma carreira com passagens por Leixões, Atlético, Benfica e Académica, entre outros clubes. Apesar disso, o nome do pai, mesmo sendo permanente motivo de orgulho, sempre pesou no seu trajeto.

Uma das grandes figuras do futebol nacional – foi o primeiro português a sagrar-se campeão como treinador do Benfica, e selecionador nacional entre 1978 e 1980 - Mário Wilson sénior, o velho capitão, cruzou-se com o filho em quatro equipas. «Costumo dizer a brincar que tropecei quatro vezes no meu pai ao longo da carreira: no Benfica, na Académica, no Estoril e no Louletano. Felizmente, à exceção do Estoril, cheguei sempre ao clube antes do meu pai mas, pesando tudo nos pratos da balança, é uma situação que prejudica mais do que beneficia», assume o filho.

Os efeitos negativos foram percebidos muito cedo, quando em 1973/74, nos primeiros tempos de sénior, ao serviço do Leixões, lhe coube defrontar o V. Guimarães, treinado pelo pai: «Nesse jogo, a título excecional, a tática foi comunicada individualmente e o onze inicial só foi anunciado em cima da hora. Essa foi uma desconfiança que me marcou muito. Felizmente o jogo correu-me bem, mas para bom entendedor...»


Benfica 1979/80: Mário Wilson pai está ao centro, o filho é o quinto a contar da esquerda, em cima

Não foi esse o único exemplo de incómodos provocados por ser filho de quem era, mesmo antes de passar a ter o pai como técnico, o que aconteceu pela primeira vez em 1979, no Benfica: «Antes disso, várias vezes senti que não era muito pacífica a presença de um filho de um treinador de renome numa equipa. Os treinadores desconfiavam que eu pudesse interferir, ou ter um olhar mais crítico em relação ao seu trabalho», conta.

Na Luz, onde chegou em 1977, para cumprir três temporadas, a desconfiança passou para o lado dos companheiros de equipa quando o seu pai assumiu o comando, em 1979: «A situação já era complicada, havia muitos jogadores de qualidade e eu tinha de lutar muito por uma uma aberta. Ficou ainda mais difícil, e a relação com os colegas tornou-se delicada. Posso dizer que nunca na carreira tive tão pouco tempo de cabina como nesse ano, precisamente por sentir que os meus colegas não estavam à vontade para aqueles momentos em que querem desabafar ou criticar o treinador. Por causa disso, eu chegava, equipava-me, tomava banho, vestia-me e ia embora. Também por isso evitava participar nos convívios fora dos treinos. Mas, passados todos estes anos, posso garantir que nunca soube nada em relação à equipa antes dos meus colegas. Aliás, quando o meu pai e eu estávamos na mesma equipa, raramente falávamos de futebol fora do trabalho», reafirma.

A situação repetiu-se em mais três equipas, mas aí já sem tanta carga negativa: «Nos outros clubes a minha titularidade não era posta em causa, eu já me tinha imposto antes de o meu pai chegar», refere. Olhando para trás, Mário Wilson filho não tem dúvidas de que a sua carreira sofreu com a herança familiar, mas não hesita em apontar o lado positivo da situação: «Talvez o meu pai tenha uma opinião diferente, mas acho que a maior cobrança incidiu em mim, até pela carga do nome e pela obrigação permanente de dignificar o grande trajeto do meu pai. Mas, modéstia à parte, aprendi com um grande treinador e fiquei a conhecer a fundo a sua forma de pensar e ver o futebol», resume o responsável pela escola de futebol Mr. Wilson.

António Sousa: «Depende muito do que faz o jogador»

António Sousa viveu situação semelhante, mas do outro lado da barricada. Já depois de terminar uma fantástica carreira de jogador, coroada com o título de campeão europeu, em 1987, foi como treinador que teve de gerir equilíbrios delicados nas ocasiões em que trabalhou com o filho, Ricardo Sousa, que nos últimos anos da década de 90 era uma das grandes promessas do futebol português. « Comecei por promovê-lo à equipa sénior, na Sanjoanense (N.R.: em 1996) mas aí foi mais fácil. No Beira Mar (N.R.: em 1998/99), por ser num escalão superior, com muito mais exposição, a situação foi mais complicada. Por muito que a análise seja equilibrada, olha-se naturalmente de lado para uma relação familiar entre treinador-jogador», admite o antigo internacional português.

Por entendê-lo logo à partida, António Sousa geriu a situação com mais pinças do que o faria se não houvesse o parentesco: «Fui buscá-lo (N.R.: por empréstimo do FC Porto) no mercado de inverno, juntamente com o Caneira (NR: emprestado pelo Sporting). Mas na primeira convocatória, ao fim de uma semana de treinos, chamei o Caneira e deixei o Ricardo de fora. Nestas coisas, a desconfiança do balneário é inevitável, em relação a mim e ao colega. E muito depende do que faz o atleta para diluir essa desconfiança. Eu limitei-me a atenuar o primeiro impacto, provando que não havia proteção. Ele continuou a trabalhar, de forma séria, e ganhou o lugar na convocatória, primeiro, e na equipa, depois», conta o antigo médio de FC Porto, Sporting e Beira Mar.

Nestes casos, António Sousa acredita que a maior carga de desconfiança incide sobre o treinador: «É ele quem toma as decisões e quem tem de gerir os estados de ânimo de 25 ou 26 jogadores. Já o Ricardo preocupava-se em provar que era mais um e, acima de tudo, mostrar que nada do que era dito no balneário me chegava através dele. A verdade é que em família não falávamos da equipa, só quando estávamos em ambiente de trabalho», conta.

Também por isso, António Sousa admite que o ponto mais alto da sua carreira como treinador tem um sabor especial, por ter sido conquistado daquela forma: a 19 junho de 1999, poucos dias depois da tristeza de ver confirmada a descida de divisão, o Beira Mar conquistou a primeira – e, até agora, única - Taça de Portugal do seu historial, batendo o Campomaiorense no Jamor. O golo – golaço, melhor dizendo - foi de Ricardo Sousa.

O golo de Ricardo Sousa na final da Taça de 1999


Passados 15 anos, o treinador-pai reconhece o óbvio: a conquista ganhou um sabor especial por ter sido conseguida assim. «Tem um cunho muito especial por ter sido onde foi, no clube em que foi, e com o golo que foi. É evidente que tudo isso mexeu comigo. Foram dias muito intensos. Ganhei muitas taças como jogador mas isto foi diferente de tudo o resto», conclui.