Por Francisco Frederico*

Aquilo que um atleta paralímpico mais detesta é que tenham pena dele. Por isso, quando pediram a Luís Costa que forjasse umas lágrimas para falar do seu acidente para um vídeo promocional, o paraciclista do Sporting não achou jeito àquilo e mandou retirar a cena.

A competitividade, e concorrência, entre os atletas ditos normais será outra, mas para os do desporto adaptado existe um obstáculo suplementar: a superação de um trauma de vida.

O caso não é o de um mal que veio por bem. Jamais se poderia colocar a questão nestes termos, mas lá que muita coisa na sua vida mudou para melhor… lá isso mudou.

Antigo paraquedista, pelos quais esteve na Bósnia, inspetor da Polícia Judiciária há 17 anos, Luís Costa sempre foi aquilo a que se pode chamar um duro. Um duro e um maluco por motas. Nos bailes de verão na «terrinha» (Aljustrel), como gosta de lhe chamar, o ponto alto não se dava quando o acordeonista incendiava a multidão com músicas brejeiras; o ponto alto era a chegada do Pinto (apelido pelo qual também é conhecido) com a sua nova bomba. «Andei sempre na doidice com a malta da minha geração…», admite.

Vinha de Montes Velhos, onde passou boa parte da juventude, para Aljustrel, numa viagem curta (oito quilómetros), que fez centenas de vezes, com maiores ou menores sobressaltos, até esse dia 10 de Junho de 2003, quando completava 30 anos.

«Tinha uma Ducati havia um mês. Vinha da casa dos meus pais, em direção à da minha sogra, onde iria ser a festa. Ao passar a linha do comboio, à entrada da vila… só me lembro de acordar cinco dias depois. Ninguém viu o acidente, fui cuspido contra um sinal de trânsito, bati com a perna, não a parti, mas esmaguei a artéria principal na zona do joelho. Quando desperto no hospital, o médico diz-me: vamos ter de lhe cortar a perna», conta, com uma frieza desconcertante: «Congelou-se o bolo e comeu-se um mês depois.»

O mundo desabou-lhe aos pés? Nada disso. Se a vida é dura, como terá escrito Shakespeare, Luís Costa aprendeu que consegue ser mais duro ainda. «Não foi o choque que as pessoas pensam que deveria ser. Não havia, não houve, choque. É simples. Quer um exemplo? Saí do hospital, vou para casa, com o colar cervical, com o qual tive de andar cinco meses. No dia seguinte, qual foi a primeira coisa que fiz? Fui para o ginásio. E fui para o ginásio todos os dias! A minha pressa era: quando é que eu posso meter a prótese? Doutor, quando é que eu posso meter a prótese? Calma, é preciso esperar uns quatro meses, dizia ele.»

A recuperação teve alguns percalços, esses sim, mais marcantes. «Custou-me mais ao fim de quatro meses, quando fui ao hospital para meter a prótese, e reparam que a operação estava mal feita, porque eu ainda tinha partes moles. Tinha de ser operado, outra vez! Ansiava colocá-la, por ter a ideia de que, depois de a meter, a minha vida voltaria a ser normal. Até pensava que ia poder voltar a correr e tudo. Mas não foi assim. Caía várias vezes, havia alturas em que só me apetecia pegar nela e jogá-la fora! Desenrasco-me melhor sem ela! Aquilo atrapalha muito! Foi complicado até aprender a andar com aquilo. Mas, no hospital, parecia fácil. Comecei logo a fazer contas de cabeça. Ora, agora trabalhar não posso até ter a prótese, depois vou para o ginásio, o que calha bem, porque, assim, até durmo melhor...»

A cabeça de Luís Costa foi, definitivamente, o seu ponto forte. Isso e algumas circunstâncias que ajudaram a compor o quadro.

«Depressão? Não, tive o apoio psicológico. Um individuo que trabalha nas obras e sofre um acidente destes… é complicado. Como é que alguém, que anda nos andaimes, a carregar baldes de massa, se é amputado… imagine que não tem habilitações, tem a quarta classe ou o sexto ano, como vai ser a vida dele? Muito complicado. Eu não. Tive a sorte de manter o meu trabalho, nunca tive problemas com dinheiro, estava de baixa, recebia o meu ordenado por inteiro. Voltei a fazer a mesma coisa que fazia, no meu departamento, alguns processos ainda lá estavam.»

«Tive apoio da família, tinha um filho, na altura com 4 meses, agarrei-me a isso. Agarrei-me a isso. Se não fosse por mim, que fosse por ele. Tenho noção de que, se não tivesse as condições de emprego que tinha, uma vida familiar estruturada, não fosse isso, poderia ter entrado pelo caminho inverso… a tal depressão, a tal revolta. Esta última cheguei a senti-la, mas naqueles momentos difíceis, quando caía, queria fazer uma coisa e não conseguia. Ia para o trabalho, e tinha de subir quatro andares, porque o prédio não tem elevador. Aquilo, ao princípio, custava-me muito. Hoje em dia, já estou habituado. A fim de tantos anos… Mas mesmo com as condições que tive, não foi fácil. Poderia ter entrado em depressão. Tenho consciência de que tenho muita força», concorda.

Com o tempo, que, dizem, tudo cura, o atleta leonino adaptou-se à sua nova condição, e, percebe-se facilmente pelo discurso, não é homem de lamentações. Só uma coisa ficou para trás. Ou teve de ficar. «Já não posso andar de moto como andava. Ainda tive uma moto quatro, mas não dava para ir às concentrações. Depois, apareceram motos com sidecar, mas fartei-me, também tive despesas com uma separação, e acabei com as motos. Mas o bicho está cá dentro, é uma questão de anos, e lá estarei outra vez.» 

Entrevista: «Estou em condições de lutar pelas medalhas»

Comprou a primeira handbike, bicicleta adaptada para ser pedalada com as mãos, em 2012, e começou a treinar. Passados quatro anos é uma das esperanças de Portugal nos Jogos Paralímpicos. Entra em competição nesta quarta-feira no contra-relógio e no dia segunte na prova de ciclismo de estrada, na classe H5.

Numa modalidade muito recente em Portugal, Luís Costa é rei e senhor. Sem concorrência à altura a nível nacional, restam-lhe as competições além-fronteiras para evoluir e colocar-se, verdadeiramente, à prova. Humildemente, reconhece que há quatro atletas no Mundo a quem nunca conseguiu ganhar, que vão estar todos no Rio de Janeiro.

Mas depois de uma preparação como nunca teve, num dia bom, e com um pouco de sorte, o atleta de Aljustrel acredita que pode surpreender. Acredita nisto com a mesma força que defende o lema dos paraquedistas que representou: «Que Nunca Por Vencidos se Conheçam»

Está a chegar o grande momento. Como foi a preparação?

São treinos diários e bidiários, seis vezes por semana, ou seja, tenho um dia de descanso, e há dois dias em que faço dois treinos, bicicleta e ginásio. Nesta altura sobe a exigência, a responsabilidade é outra, e os objetivos também. É preciso aperfeiçoar os detalhes. Tenho um preparador-físico da federação, que vai ao pormenor, está sempre a mudar os exercícios, a ver onde pode tirar um pouco mais do meu corpo. Neste momento, acredito que estou no meu pico de forma.

Falou de responsabilidade. Será a primeira vez que Portugal estará representado no paraciclismo, nestes moldes atuais, em que o ciclismo adaptado se encontra integrado na Federação Portuguesa de Ciclismo. Sente a pressão?

O que me pressiona não é a opinião publica, não estou preocupado com isto. Não sou candidato a medalhas, se ganhar uma, acontece, quero que aconteça, mas, quem está por dentro, e sabe os atletas que lá vão estar, não conta que eu ganhe. Se acontecer será uma grande surpresa. A minha pressão é saber que tenho de estar no topo da forma, só isso. Outsider? Claro, a pressão está do lado deles, não do meu, está no Zanardi, que toda a gente quer que ganhe. Não estou preocupado. Vou tentar fazer uma surpresa.

Ansiedade?

É mais o medo de um pormenor estragar uma preparação de anos. E quanto mais perto pior. Posso chegar ao Rio e fazer uma entorse. Tento não pensar nisso. Mas acontece. Mesmo a meses da competição, no inverno, acontece-me voltar de um treino com um torcicolo, ou uma dor insuportável num ombro, que estou ali três ou quatro dias que mal posso pedalar. Ou, então, uma dor lombar. E penso: se isto me acontece perto da prova? Já me tenho deitado bem e no outro dia acordo com dores. E se me acontece no Rio? Como encarar isso? Já nem falo de ser sétimo, oitavo, nono… e depois as perguntas: desilusão? Desilusão é para quem não percebe das coisas.

Mas em que lugar acredita que pode ficar?

Tenho noção, neste momento, que tenho condições para lutar pelas medalhas, mas se não o conseguir não é desonra nenhuma, depende é da forma como as coisas correrem. Se não ficar nos cinco primeiros, mas ficar muito longe deles, a cinco ou dez minutos, fico frustrado, mas se for décimo, a um segundo do primeiro, já não fico . Isto tem tudo a ver com ficar próximo do melhor, do primeiro. Para já, só lá estão os melhores atletas do mundo. Se chegar lá, e der o meu melhor, sabendo que não dava para mais, eu volto de consciência tranquila; se não der o melhor, se sentir que fiquei muito longe do meu real valor, ficarei muito frustrado. Se acontecer, é levantar a cabeça, e pensar que daqui a quatro anos há Tóquio. Afinal, comecei nisto há três anos, também não posso martirizar-me se não ganhar uma medalha, são os meus primeiros Jogos.

Quem são, então, os favoritos?

Há um núcleo duro de quarto atletas, a quem nunca ganhei. O Alessandro Zanardi, claro, que é o campeão olímpico em titulo, um holandês, o Jetze Plat, campeão do mundo de paratriatlo, há ainda o Oscar Sanchez, americano, especialista contrarrelógio, e um australiano, o Stuart Trip. Depois, há mais alguns nomes, que já venci, mas estamos equilibrados. Um sul africano, Ernst van Dyk, que já foi campeão olímpico, tanto de handbike, como em cadeira de rodas. Para verem, nos últimos 11 anos, venceu 10 vezes a maratona de Boston em cadeira de rodas. Além dele, há mais dois holandeses, o Tim de Vries, e o Johan Reekers, um jovem de 58 anos, que foi a todos os Jogos Paralímpicos, desde os 18 anos.

Profissionais versus amadoresComo são as condições de que dispõe em comparação com as dos seus rivais?

Eles são profissionais, não fazem mais nada. Vivem para isto. Eu sou amador. Estou aqui, em Portimão, a trabalhar, e a treinar, enquanto eles estão em estágios, na Colômbia, por exemplo.

Dá-lhe mais motivação?

Eu levo isto como se fosse profissional, ponho isto à frente de tudo, do meu trabalho, tudo. O país, através do Comité Paralímpico, investiu em mim nos últimos dois anos largos milhares de euros. É uma responsabilidade acrescida. Tenho de levar isto a sério. É dinheiro dos contribuintes, eu também pago impostos. Eu não gostava de ver um tipo chegar a uma competição e vir a saber que não fez um único treino. O país são as pessoas, são os contribuintes, isto motiva-me, e faz-me sentir responsável.

Mas tem o estatuto de atleta de alto rendimento?

Sim, permite-me entrar e sair uma hora mais tarde ao serviço. Tenho, felizmente, um chefe compreensível, amante do ciclismo. Tenho inveja dos países onde os paralímpicos são tratados como de ser. Holanda, Eslovénia, Suíça, Alemanha, Estados Unidos… é a loucura. Os americanos estão concentrados desde janeiro, quem trabalha, está dispensado. Os holandeses, também em janeiro, já lá estavam (no Rio de Janeiro) a ver aquilo, depois voltaram. Fazem muitos estágios.

É uma disparidade enorme. Os seus adversários ficam surpreendidos por conseguir, ainda assim, conseguir ombrear com eles?

Acham piada quando estamos, por exemplo, numa Taça do Mundo, e eu digo: vamos lá despachar a entrega dos prémios que tenho de ir para Portugal, porque amanhã vou trabalhar. Ficam estupefactos quando lhes digo o que faço: sim, sou inspetor da polícia. A sério? Mas tu trabalhas? Sim! Isso é de louvar, mas nós, agora, saímos daqui, e vamos para outro sítio, para estágio.

E, pese tudo isto, ficou a um segundo de vencer uma etapa da Taça do Mundo e terminou a época como o número um do ranking mundial da sua classe…

Nessa prova, pensei que lhe ganhava (ao favorito, o sul-africano Ernst van Dyk). Era montanha, e pensei, hoje vou ganhar-lhe. Primeiro, tive receio de atacar, esperei que ele atacasse, recuperei e acabo colado. Se calhar, devia ter atacado, mas o respeitinho… além disso, ele é meu amigo, um camarada mesmo. Ajudou-me imenso, e até me vendeu (é representante de uma marca) uma bicicleta com um grande desconto quando tive de mudar de classe.

Os rivais podem ser amigos?

Sim, de facto existe amizade e solidariedade entre os handbikers, que talvez se note mais na minha classe, porque somos poucos em comparação com as outras classes. Acabamos por nos conhecer bem uns aos outros. Somos uma pequena família.

Zanardi serviu de inspiraçãoExiste uma prova de fundo e outra de contrarrelógio. Em qual delas é melhor?

Sou mais forte no fundo. Contrarrelógio não é a minha praia. Não consigo manter um nível, não sei gerir o esforço. Faço demasiado esforço nos primeiros quilómetros e depois pago a fatura nos últimos.

Como é que surgiu este interesse pelo paraciclismo?

Eu já fazia desporto diariamente, sempre fiz desporto. O que mudou foi ter passado a levar isto muito mais a sério. O ciclismo foi por acaso. Comecei a ver os Jogos Paralímpicos em Londres, com aquela atenção toda ao Zanardi. O Zanardi é o Zanardi, claro. E despertou-me a atenção aquele veículo que ele tinha. Ele também é amputado, ainda me lembro do acidente dele. Não tem as pernas. Pensei: e se eu pensasse em ir à internet, ver o que há para aqui, que raio de veículo é aquele, quando dei por isso, já tinha uma, comecei a treinar. Ao princípio, só queria dar umas voltinhas. Consegui bicicletas com campanhas de angariação de fundos, por exemplo no Facebook. A minha primeira prova foi em março de 2013, em junho já estava a correr a Taça do Mundo… contra o Zanardi.

A história do Zanardi, que, convém não esquecer, é o campeão olímpico em título, é uma fonte de inspiração?

É. Era piloto de Fórmula 1, passou para a Indi, teve o acidente, ficou sem pernas, mas recuperou, e, hoje em dia, ainda é piloto de testes da BMW, e faz as hanbikes. Tem uma que, até pouco tempo, era a única totalmente em carbono. Dizem que gastaram 250 mil dólares para a desenvolver toda em túnel de vento. Tudo pago pela BMW. E tem uma vantagem: não tem as duas pernas, pesa menos do que eu, que tenho uma, por exemplo.

Mas a história de vida dele é uma gota no oceano ao pé de outras. Havia um italiano, que deixou de correr há dois anos. Aos 30 e pouco anos, diagnosticaram-lhe una doença sem cura. Iria definhar até morrer, e não teria muitos anos de vida, aliás, penso que lhe disseram que tinha apenas um ano de vida. Foi quando começou a correr. Quando o conhecemos ele nem se alimentava sozinho, mas, no ano a seguir, já conseguia fazê-lo. Para alguém a quem deram um ano de vida, vi-o, a cada ano, com mais mobilidade. Só que, em 2014, as dificuldades voltaram… Mas fica o exemplo. Uma força de viver, uma coisa impressionante. Durante dois anos foi a todas as provas que pôde.

Já aqui o disse: o desporto adaptado não é tratado como devia ser em Portugal. Acredita que, caso se saia bem, isso também pode contribuir para mudar o statu quo?

O problema do paraciclismo em Portugal é o desconhecimento. Temos tantos deficientes motores, tantos, mas depois não conhecem o desporto. Há esperança que pelo menos eu lute pelos primeiros cinco, a comunicação social vai ter de mostrar. Vai fazer com que aquele individuo, que, tal como aconteceu comigo, que descobri pela televisão, durante os Jogo de Londres, tenha curiosidade. Podem ver as nossas páginas no Facebook, ver que há competições… só que, depois, há o problema do dinheiro. O ciclismo é caro, mas o paraciclismo ainda é mais caro. É preciso ir à luta, pedir ajudas, donativos, às empresas, juntas de freguesia. Infelizmente, o Estado ainda não criou mecanismos para ajudar a malta…

Para terminar, que conselhos daria a alguém que passou por algo semelhante a si?

A vida continua, só temos de nos adaptar à nova condição. Qualquer que seja a incapacidade, se estamos vivos, há maneiras de continuar a nossa vida, com um mínimo de qualidade. Se tivermos condições para fazer desporto, ótimo! Mesmo que nunca tenham feito, é a altura para começar a fazer. Não é só por ser saudável. Aconselho começar logo a competição, porque permite traçar objetivos, e vermos que estamos a progredir. A adrenalina da competição, alcançarmos as nossas metas, começamos a ter algo para lutar… damos outro sentido à vida. Perdemos algumas coisas, é verdade, não conseguimos fazer tudo o que fazíamos, como eu, que corria todos os dias 10 quilómetros. Estamos numa cadeira de rodas. Tudo bem. Pode-se ir para uma handbike, fazer atletismo na cadeira de rodas, pode-se jogar basquete, ténis de mesa, fazer remo, o desporto adaptado não tem limites. O meu conselho: levantar a cabeça, seguir em frente… o desporto é a melhor terapia.

Veja o tal vídeo do Comité Paralímpico de Portugal com Luís Costa, uma «História de fibra»

 

*jornalista da TDM, Teledifusão de Macau