Aquela fortaleza em campo.

Gigante. Um monstro. Intransponível. Bravo!

Fora de campo, muito semelhante.

Um bom gigante. Um monstro de alegria. Mas do mais acessível que se possa imaginar. E Bravo. O apelido que o acompanhava e que não podia ser mais apropriado nem que fosse escolhido.

A todos os desafios, Quintana respondia com um sorriso nos lábios. Um sorriso malandro que nem na baliza larga perante os adversários.

Um pequeno testemunho.

Para quem está mais habituado ao mundo fechado do futebol, pode ser difícil de imaginar. Mas, quando os andebolistas estão ao serviço da seleção, o acesso dos jornalistas a eles é… total.

No Europeu de 2020, aquele em que Portugal alcançou o melhor lugar de sempre, o Maisfutebol comprovou isso mesmo.

As antevisões aos jogos eram feitas no hotel da seleção. E os jornalistas podiam falar com quem quisessem. Sim, reforçamos: com quem quisessem.

Só havia um problema: a timidez de alguns dos jogadores impedia-os de falar.

Mas mesmo para isso, encontrava-se sempre uma última solução: pedir uma ajudinha ao ‘relações públicas’, o mais extrovertido da seleção: Alfredo Quintana, pois claro.

- Quintana, não o queres tentar convencer?

- Oh, ele fala. Vais ver que ele fala.

E falava. Porque era impossível dizer não a Quintana. Um líder sabe sempre dar a volta. E para ele era fácil.

Tal como era do mais simples reconhecer o mérito dos colegas.

Outro episódio.

- Quintana, o Fábio Magalhães diz que tu lhe ‘roubaste’ o prémio de melhor em campo com a Suécia. Que ele é que foi o melhor.

- Eu também acho que ele merecia.

- E podemos gravar contigo a falar disso com ele?

- Claro, mano.

Convidamos o selecionador nacional para se juntar à mesa e…

AÇÃO!

- Tu já ganhaste um. Acho que não custava nada este ser para mim.

- Eu também acho que devia ser teu. Mas gostava mesmo era de te ver a ir à baliza…

(…)

- Eu dava o prémio ao Fábio. Já tinha ganhado um, por isso dava-lho. Mas já agora, pedia para me devolverem o prémio que ganhei no primeiro jogo e que desapareceu.

- Desapareceu?

- Pois. Oh, vocês já sabem como é, um tuga…Vê uma coisa que está fora do sítio e arruma. Eu só ainda não sei onde está arrumado. Já perguntei, mas ninguém me responde. Se calhar foi alguém que achou que merecia ganhar…

E a loucura saudável. Também nisso, Quintana era um exemplo. Mas garantia não ser o único.

- Nesta equipa, toda a gente tem a sua dose loucura. Depois chega dentro de campo e sabe o que tem de fazer. Mas quando sai… É um circo – com todo o respeito, que está aqui o treinador -, mas esta equipa é um circo. Vê-se cada coisa…

E gargalhadas a fechar.

Aliás, as gargalhadas eram banda sonora sempre que Quintana está presente.

Gargalhadas e música cubana. «Um dia que não ouça música cubana, não serei eu», confessou uma vez, ao jornal A Bola.

Bela banda sonora.

Um guerreiro de ambição sem limites

Havana.

Alfredo Quintana foi o primeiro jogador cubano de andebol a aterrar em Portugal. Estávamos em março de 2011 e o então jovem guarda-redes, internacional A por Cuba, juntava-se às opções para a baliza do FC Porto, então orientada pelo sérvio Ljubomir Obradovic.

O resto é história.

Aquele gigante de 2,01m nascido na capital cubana, em março de 1988, e fã incondicional de basebol na infância, cresceu, cresceu e nunca mais parou de crescer.

Na ligação forte – quase irmandade - que estabeleceu com Hugo Laurentino, com quem assumiu várias vezes ter aprendido muito, começou o percurso que o levou a ser apontado, atualmente, como um dos melhores guarda-redes do mundo.

E sem favor.

Com ele, o FC Porto - e a seleção nacional, a partir de 2014 – subiram, não um, mas vários degraus de competitividade internacional.

Algo que tem muito a ver com a bravura deste gigante.

Quintana não temia qualquer adversário. Zero.

E se não há ponta de receio na última barreira de uma equipa, aquela que está lá para dar o corpo às bolas quando tudo o resto falha, não pode haver receio em ninguém.

É contagiante.

Com Quintana na baliza – e Humberto Gomes, obviamente – Portugal surpreendeu a Europa no início de 2020.

No Europeu disputado na Áustria, Noruega e Suécia, o guardião tornou-se pesadelo de alguns dos melhores jogadores do Mundo.

Mas só dentro de campo. Nos corredores dos hotéis onde as seleções ficavam - todas hospedadas no mesmo hotel -, mais do que o respeito, era claro o carinho com que todos o abordavam e com quem o gigante português conversava durante largos minutos.

Da Escandinávia, Portugal trouxe então a melhor classificação de sempre. Um sexto lugar que encheu de orgulho todo o país. Mas que soube a pouco a quem sempre ambicionou o céu e mais além.

«Nós acreditávamos mesmo que podíamos ganhar a qualquer equipa e chegar ao título. Mas claro que estamos orgulhosos pela classificação que conseguimos», diria após o regresso a Portugal.

A filha, refúgio maior, e o sonho dos Jogos Olímpicos ao estender do braço

Nesse regresso a Portugal, no início de fevereiro de 2020, Quintana assumiria ainda que aquilo que mais falta lhe fizera durante o mês no Europeu tinha sido a família. A mulher e a filha, então com pouco mais de meio ano.

Nas redes sociais de Quintana era fácil perceber que a pequena Alicia era o refúgio maior de um atleta excecional.

De um guerreiro que, ninguém duvida, se agarrou com tudo à vida. Porque foi assim que sempre fez, como lembrou o FC Porto nesta terça-feira.

«Tenho lutado desde que era criança. Não sou um sobrevivente. Sou um guerreiro extraordinário», afirmou Quintana em 2020. 

Um guerreiro que nunca será esquecido.

Quer pelo atleta soberbo que foi, que em quase 500 jogos pelo FC Porto conquistou seis títulos nacionais, uma Taça de Portugal e duas Supertaças – além dos resultados históricos com a seleção; quer pelo ser-humano que sempre mostrou ser e que a todos conquistou.

No currículo ficam ainda as duas participações em Mundiais. Em 2009, com a seleção cubana, e há pouco mais de um mês por Portugal. Um país que o acolheu e por quem prometeu «dar sempre 100 por cento».

E deu. Se deu…

Por cumprir, fica apenas o sonho dos Jogos Olímpicos. Um sonho que estava ao estender da mão. 

Portugal vai disputar o torneio pré-olímpico em março, com França, Croácia e Tunísia. E agora, mais do que nunca, vai ser uma luta para verdadeiros guerreiros.

Daquelas de que o guarda-redes de 32 anos tanto gostava. 

E para esse torneio, a seleção portuguesa pode levar o conselho que Quintana deixou à filha: «é proibido desistir».

É proibido desistir.

É proibido desistir!

Obrigado por tudo, Alfredo Eduardo Quintana Bravo.

[adaptação do texto publicado originalmente a 23 de fevereiro, em homenagem a Alfredo Quintana]