Aquela pré-época de 2017-2018 quase fez ruir o sonho.

No primeiro ano como sénior, depois de ter feito toda a formação no Ericeirense, Matheus Nunes apostava forte na afirmação no Oriental, que ia disputar o Campeonato de Portugal.

E as coisas até pareciam estar a correr-lhe bem. Ele destacava-se nos treinos e estava confiante. Só que uma um estiramento na coxa obrigou-o a parar duas semanas. E quando ele regressou, foi recebido com o aviso de que estava dispensado.

O abalo para aquele miúdo de 19 anos acabados de fazer foi grande. Mas o amor ao futebol foi maior.

Sem alternativa, Matheus regressou ao ponto de partida. Ao Ericeirense, que foi a casa dele desde que chegou a Portugal, aos 13 anos.

E se ali tinha treinado «a dar tudo em cada treino, como se pudesse ser titular ao fim semana» durante uma época inteira em que (des)esperou por autorização da FIFA, foi também ali que embalou para agarrar o sonho com todas as forças.

A época que começara em desilusão, terminou em festa. O Ericeirense sagrou-se campeão da Divisão de Honra da AF Lisboa e subiu ao Pro-Nacional, com uma excelente época de Matheus Nunes.

No início da época seguinte, abriu-se uma nova oportunidade. Com a ida de uma equipa técnica com raízes na Ericeira para o Estoril – Luís Freire e os seus adjuntos até se iniciaram no Ericeirense – o nome de Matheus foi sugerido como possibilidade para os sub-23.

E mesmo vindo de uma segunda divisão distrital, rapidamente o médio convenceu o compatriota Lucas Goes, então treinador dos sub-23 da equipa da linha. E fê-lo de tal forma que acabou até por fazer quase toda a pré-época com a equipa principal, beneficiando de algumas lesões.

A partir daí, a ascensão foi quase meteórica. Em meia época, com 12 jogos na Liga Revelação e oito na equipa principal, o médio box-to-box convenceu o Sporting a oferecer 500 mil euros por 50 por cento do passe – ficando com opção de compra de mais 40 por cento, por 500 mil euros.

Na equipa de sub-23 dos leões, Matheus Nunes tornou-se peça essencial, ao mesmo tempo que foi sendo chamado várias vezes a trabalhar com a equipa principal, quer por Keizer, como por Leonel Pontes e Silas.

Quando a pandemia parou o futebol em março de 2020, a estreia de Matheus na equipa principal ainda estava por consumar. Mas cedo se percebeu que deveria chegar na retoma do campeonato, já pela mão de Rúben Amorim, algo que aconteceu logo no primeiro jogo após a pausa.

Foi em Guimarães, frente ao Vitória, num empate 2-2.

Antes disso já uma frase do presidente do Sporting, Frederico Varandas, tinha criado uma ligação incontornável entre o médio brasileiro e o treinador: «Só Matheus Nunes vai pagar Rúben Amorim».

Ora, feitas as contas por alto, o líder leonino avaliava o jogador de 21 anos em 10 milhões de euros.

Para o Maisfutebol, foram 10 milhões de razões para ir em busca da história de Matheus Luiz Nunes. Venha connosco.

«Era júnior de primeiro ano e já fazia a diferença nos seniores»

Rúben Franco lembra-se bem do dia em que lhe apareceu um miúdo brasileiro a pedir para treinar nos iniciados do Ericeirense, já com a época a decorrer.

«Nessa altura, todos os que viessem eram úteis. Mas logo no primeiro treino todos percebemos que ele era um jogador muito acima da média para a nossa realidade. Além disso, mesmo não podendo jogar, dava tudo em todos os treinos, como se pudesse ser titular ao fim semana», recorda.

A inscrição, porém, só pôde ser feita no ano seguinte, já com uma autorização da FIFA, que teve de viajar até ao Brasil para ser assinada pelo pai de Matheus e devolvida a Portugal, para onde o adolescente se tinha mudado com a mãe.

A partir daí, a formação de Matheus desenvolveu-se naturalmente. E cada vez os sinais da qualidade ficavam mais claros.

«Com a competição, ele tornou-se ainda melhor. Era, sem dúvida, um diamante em bruto que tínhamos nas mãos. Trabalhámos o aspeto em que era menos bom: era muito ele e a bola, e não percebia bem o jogo. Mas era muito perspicaz e, tecnicamente, fenomenal», descreve Rúben Franco.

A qualidade era tanta que, anos depois, quando o técnico assumiu a equipa principal do Ericeirense não hesitou nem um minuto em chamar Matheus para junto dos seniores.

«Ele era júnior de primeiro ano, mas eu nunca liguei ao bilhete de identidade. Não começou logo a época a titular, mas houve um jogo em que entrou e partiu aquilo tudo e depois foi sempre titular», recorda Franco.

Leicester, Lille, Sp. Braga, Benfica: não, não, não e ainda não

A qualidade que mostrou, ainda que num escalão distrital do futebol nacional fez alguns clubes repararem nele.

No final dessa primeira época a jogar nos seniores, Matheus Nunes esteve uma semana a treinar à experiência nos ingleses do Leicester, convencidos pelo vídeo que pode ver abaixo. Acontece, que o jovem acabaria traído pelo inesperado título da equipa de Ranieri.

«Eu acompanhei-o durante essa semana e ele fez bons treinos, tecnicamente deslumbrou toda a gente, mas esse foi o ano em o Leicester foi campeão e aquilo era a loucura total por causa disso. Talvez não lhe tenham dado a devida atenção por tudo aquilo que estava a acontecer», acredita Rúben Franco.

Pela mesma altura, Matheus esteve a treinar à experiência no Lille e também no Sp. Braga. «Reconheciam-lhe qualidade, mas diziam que não era aquilo que procuravam», recorda o técnico.

Nesse sentido, na época seguinte, continuou a ser o Ericeirense o clube que representou.

Matheus chegava então a sénior. E Rúben Franco admite que por vezes o jovem chegou a duvidar do valor que tinha e questionar se todos os sacrifícios teriam valido a pena.

Nessa altura – e praticamente desde que o jogador do Sporting chegou a Portugal – um dos grandes conselheiros foi Humberto Salvador, dirigente do Ericeirense, que chegou também a partilhar o balneário com Matheus.

«Sempre acreditei nele, porque além da qualidade técnica, tinha muita cabeça. E por isso, lutei sempre para ajudar a que ele tivesse uma oportunidade no futebol, onde a qualidade nem sempre basta, como sabemos todos», defende.

Nesse sentido, Humberto Salvador acompanhou Matheus em todas as equipas nas quais ele esteve à experiência. E foi também ele que o convenceu a voltar ao Ericeirense depois da pré-época que fez no Oriental… e que lhe ofereceu emprego numa das suas pastelarias.

«Ele já queria ganhar o dinheiro dele, até para ajudar a família, porque tem a mãe, um irmão mais velho e duas irmãs pequenitas. Por isso, arranjei-lhe trabalho. Se se safava? Claro. Ele é um miúdo inteligente e bem-educado, por isso não tinha qualquer problema», destaca.

Entre jogar no Ericeirense e servir à mesa e balcão da pastelaria, também nessa época, Matheus Nunes esteve a treinar à experiência no Seixal. Como era já sénior, foi integrado na equipa B dos encarnados, treinando sob as ordens de Hélder Cristóvão.

«Fez uma semana de treinos, no final disseram que ele tinha valor, mas que não estava preparado para a exigência de uma II Liga e da equipa B do Benfica», recorda.

Matheus Nunes (em baixo ao centro) na festa do título na última época no Ericeirense

Cerca de dois anos depois, e com o percurso já relatado pelo Estoril e Sporting, Matheus Nunes parece preparado para brilhar do outro lado da Segunda Circular.

Isto, a avaliar pelas palavras de Frederico Varandas. Mas também daqueles que o conhecem bem.

«10 milhões? Ele diz que quer é mostrar o futebol que tem»

Já em maio, ainda longe de imaginar que, nove meses depois, se tornaria herói do dérbi eterno, precisamente frente à equipa que o rejeitara, Matheus Nunes sabia que tinha de dar um passo importante. Isso era dito diretamente por Ruben Amorim, o treinador que viria a lançá-lo.

«O Ruben já lhe disse que está na hora de ele entrar numa nova fase da carreira e que por isso vai dar-lhe minutos», confidenciava então Humberto Salvador, com a certeza que o amigo iria dar boa resposta.

«Ele é muito focado. Basta ver que nos últimos dois anos, ganhou 15 quilos de massa muscular. Acho que isso diz muito do quanto ele quer singrar no futebol. Este é um mundo feito de oportunidades, e tudo indica que ele terá a dele, até porque o clube vai ter de apostar na prata da casa», realça.

Outro sinal que o amigo de Matheus vê do foco do jogador prende-se com a reação dele às palavras de Frederico Varandas.

«Ainda no fim de semana brincava com ele, porque havia um jornal que o apelidava de ‘monstro’, e agora o presidente diz isto. Mas ele não liga. Hoje falei com ele sobre isso e não me parece que se sinta pressionado. O que ele me disse foi o mesmo de sempre: ‘eu quero é mostrar o meu futebol’», revela.

E depois de acompanhar tão de perto todo o caminho trilhado por Matheus Nunes, o amigo não duvida: «Agora não há volta a dar, ele tem tudo para chegar lá».

O percurso no Sporting foi meteórico. Resolveu um dérbi que é eterno e isso abriu-lhe as portas da imortalidade no coração dos sportinguistas. Conquistou títulos, ganhou um lugar nas escolhas de Fernando Santos - marcou um dos golos que confirmou o apuramento de Portugal para o Mundial 2022 - e agora pagou até três vezes Ruben Amorim tal como Frederico Varandas tinha perspetivado

O sonho do miúdo que dividia o tempo entre a pastelaria na Ericeira e o relvado foi cumprido. Seguiu-se um ano no Wolverhampton e agora o salto para o Manchester City. Nada mais, nada menos do que o campeão europeu em título.

[artigo atualizado, inicialmente publicado a 19 de maio de 2020]