Este é provavelmente o único parágrafo desta crónica sem adjectivos, e destina-se a expor simplesmente os factos ao leitor que tenha estado em outro planeta nas últimas horas. Aqui vai: três dias depois de ter empatado com o Liechtenstein, Portugal venceu a Rússia por 7-1 (sete-a-um, por extenso para não haver dúvidas), em Alvalade, e igualou a Eslováquia na liderança do grupo 3. Pronto: cumprida a missão de informar, a partir de agora escreve a emoção. A exibição da equipa portuguesa merece-o.

Se há um paraíso para os que gostam de futebol deve estar cheio de jogos assim: perfeitos como nos filmes, com profissionais a divertir-se como miúdos, génios à solta, grandes golos e um público de sorriso incrédulo nos lábios. É dever de todos os que gostam de bom futebol guardar este jogo num recanto da memória, para compensar todas as vezes em que a bola é maltratada sem piedade pelos relvados desse mundo.

Pela segunda vez em quatro meses, a selecção portuguesa cruzou caminhos com a Rússia em momentos-chave da sua vida: em Junho no Europeu, era a derrota com a Grécia a deixar Scolari e companhia entre a espada e a parede, sem direito a errar. Portugal não falhou e embalou para um mês de delírio. Desta vez, com o Mundial em ponto de mira, eram as contas de uma caminhada que se desejava tranquila, complicadas pelo impensável e humilhante empate com o Liechtenstein, três dias antes.
A quente, apetece dizer que quase valeu a pena aquele festival de arrogância na segunda parte em Vaduz. Para ver jogar como Portugal jogou em Alvalade, a humilhação de um empate com uma das piores selecções do Mundo é um preço aceitável a pagar. E é certo que sem o descalabro de Vaduz, não teria havido tamanho vendaval de futebol. Porque uma vez mais se viu que esta equipa dá o melhor de si mesma quando é apanhada em falta. Esta é, afinal, uma equipa com vergonha na cara.
O sonho começou a ser construído praticamente desde o pontapé de saída. Sim, é verdade que o primeiro golo demorou 26 minutos e que até aí, à excepção de um provável «penalty» sobre Cristiano Ronaldo, Portugal não tinha feito mossa na área russa. Mas bastaram as primeiras circulações de bola para notar que a equipa ocupava os espaços na perfeição e que a determinação nas divididas garantia antecipações sistemáticas diante de uma Rússia bastante passiva.
Foi Ronaldo, em noite inspirada por todos os deuses da bola e mais uns quantos acólitos, a dar o tiro de partida para o vendaval, com um trabalho brilhante na direita, a oferecer o golo a Pauleta (26 m). Treze minutos depois, com a Rússia a tentar fazer pela vida, inverteram-se os papéis: o açoriano recebeu a bola num canto e a solidariedade insular permitiu ao madeirense mais famoso do mundo o golo que acabou de vez com as dúvidas sobre o vencedor.
Tivesse Portugal ganho o seu jogo de sábado e as coisas teriam acabado por aí, com mais ou menos controlo de bola, mais ou menos um golo. Mas esta equipa tinha uma dívida para com o público e, principalmente, para consigo própria. E o que se seguiu teve tanto de classe e qualidade como de orgulho ferido.
Veio o golo magistral de Deco - que nunca tinha jogado tanto e tão bem com a camisola das quinas ¿ a dar um tom festivo ao intervalo. A primeira parte tinha sido tão boa que ninguém levaria muito a mal o arrefecimento do jogo no segundo tempo. Mas Ronaldo divertia-se e, como um miúdo que insiste em jogar depois de acabar o recreio, não queria parar. O seu segundo golo, quarto de Portugal, foi um monumento, que embalou os últimos 20 minutos para um curioso concurso de golos bonitos, em que até o esforçado Arshavin quis entrar.
Mas os portugueses estavam de tal forma apostados em desforrar-se da vergonha de sábado que não podiam permitir que o jogo acabasse assim, com um golo russo. Então, Simão apresentou a sua candidatura ao «Quem quer marcar um golo de sonho?» e, caso alguém estivesse distraído, Petit insistiu em fechar a noite mágica com dupla chave de ouro.