Sabe que um árbitro toma três decisões por minuto, em cada jogo? E que apenas erra em 0,5 por cento dos casos? Ou que, quanto mais assobios, mais precisas são as decisões? Ou ainda como há teorias e fórmulas para ajudar a decidir se uma mão na bola foi intencional? E como as decisões críticas podem treinar-se com exercícios em campo? E imagina as conclusões a que se chega ao olhar para os pés de um árbitro? Talvez saiba, por outro lado, que a imagem dos árbitros é negativa junto dos adeptos. E com mais informação, mudaria?

Há muita informação no livro «A ciência da arbitragem em Portugal», que junta 20 estudos feitos ao longo dos últimos anos e tem apresentação marcada para esta sexta-feira, num seminário na sede da Federação Portuguesa de Futebol. Dos processos de tomada de decisão à visão dos adeptos, da fisiologia à psicologia do desporto, da forma como o treino pode ajudar a prevenir erros, estudos feitos em jogo, com árbitros, adeptos e jornalistas, o âmbito é profundo.

O
Maisfutebol
antecipa a publicação do livro, apresentando um dos capítulos que integra. Aquele que analisou a forma como os assobios ou aplausos condicionam uma decisão. Estendeu-se a árbitros, mas também a jornalistas e estudantes. E, segundo nota João Pina, responsável pelo estudo, «contraria um bocado aquilo que outros estudos dizem, que os árbitros tendem a beneficiar a equipa da casa por causa dos assobios». Leia aqui.

Há muito mais para ler. Por exemplo, os processos de tomada de decisão. Um estudo junto de um árbitro num jogo da Liga conclui que existem num jogo mais de 1200 acontecimentos passíveis de intervenção do árbitro. Mas que apenas 30 deles são «ambíguos, isto é, onde é possível serem tomadas decisões diferentes por diferentes árbitros». «É dentro destas situações ambíguas que surgem os chamados “erros” do árbitro, tendo por referência a avaliação de outros árbitros peritos. Estes erros rondam os cinco por jogo, portanto menos de 20% de todas as situações ambíguas e cerca de 0,5% do total de ocorrências atendidas pelos árbitros durante um jogo», diz o estudo de Nelson Melo e Duarte Araújo: «Por outras palavras o árbitro de primeira categoria decide bem mais de 99% das vezes.»

Também são apresentadas estratégias de treino e preparação dos árbitros, não apenas a nível psicológico mas também da própria tomada de decisões. O ex-árbitro Pedro Henriques e Duarte Araújo desenvolveram uma série de exercícios práticos para ajudar, em treino, a tomar decisões em campo.

Um exemplo:



E são abordadas questões concretas do jogo. Como a
mão na bola , que depende de o árbitro avaliar a intencionalidade, o que introduz um óbvio fator de subjetividade na decisão. O estudo pretendeu analisar ao pormenor essas situações, «para desenvolver métodos de treino».

Esse estudo concluiu, por exemplo, que, «com o braço elevado lateralmente, o contacto da bola no ombro é sempre infracção, devido à estrutura anatómica do ombro e ao tamanho da bola». E também que são necessários ao jogador «2,5m para mudar um curso de acção e interceptar a bola intencionalmente».



Este estudo também percebeu quais as maiores dificuldades dos árbitros nestes lances: «Existe uma dificuldade de identificar/decidir associada à falta de visibilidade, à dúvida sobre a naturalidade da posição da mão, à intencionalidade e devido à proximidade jogador-bola. A situação mais difícil de identificar/ decidir ocorre em média aos 63,5 minutos de jogo, na área de grande penalidade, com o jogador que toca na bola com possibilidade de visão sobre a bola, tendo alguém à sua volta, dando-se o contacto ao nível do tronco, na posição de pé ou a saltar. O que origina o toque é um cruzamento ou um ressalto relativamente perto, efectuado dentro da área ou junto à linha lateral.»

E há ainda lugar para os
adeptos, num estudo que mostra como a maioria tem imagem negativa da arbitragem, mas também que essa imagem «não influencia a tomada de decisão para assistir a encontros de futebol». E destaca, numa amostra de 2200 adeptos inquiridos via internet, o facto de estes garantirem que os comentários de jogadores, treinadores, dirigentes, jornalistas e comentadores desportivos «pouco influenciam» a sua opinião sobre os árbitros.

Para melhorar a imagem dos árbitros, os adeptos referem como solução a introdução de novas tecnologias, a transparência no sistema de avaliação e a promoção e profissionalização dos árbitros.

«Otimizar o desempenho dos árbitros», mas também a imagem e os erros: que fazer?

«Entendemos que estes estudos têm muitas conclusões interessantes que nos podem levar a otimizar o desempenho dos árbitros», observa ao Maisfutebol Vítor Pereira, presidente do Conselho de Arbitragem, a historiar a decisão de juntar num só volume os vários estudos que têm sido feitos sobre o tema ao longo dos últimos 15 anos em Portugal, na maioria em colaboração com universidades e outras instituições de ensino superior.

Vítor Pereira revela ainda que alguns destes estudos, em muitos casos feitos junto de árbitros da Liga e com «amostras muito significativas», já levaram a medidas tomadas pelo seu Conselho de Arbitragem. «Algumas estiveram na origem alguns programas, como o Programa Nacional de Recrutamento», nota. É um livro académico, mas Vítor Pereira acredita também que «todas as pessoas que se interessam por futebol e arbitragem» podem «encontrar matéria de reflexão que pode suscitar discussões interessantes».

João Pina, que faz parte da direção de publicação do livro e também do projeto Academia de Arbitragem, reforça a ideia: «O livro aponta pistas para intervenções claras e óbvias no desempenho dos árbitros.»

Colocar na ordem do dia o tema da arbitragem é também, além disso, encarar e pensar como combater a perceção negativa que muitos adeptos têm dos árbitros. Não é um problema da arbitragem, é um problema do desporto como um todo, nota João Pina: «Se as pessoas têm uma imagem negativa da arbitragem, isso vai afetar a imagem do próprio futebol. Toda a gente percebe isso, mas é grande a dificuldade em encontrar soluções.»

«A perceção de qualidade negativa o que vai fazer é afastar os adeptos, vai prejudicar a imagem do futebol», prossegue, defendendo que o cenário podia ser diferente «se os decisores tivessem isto em conta, se estivessem mais interessados em valorizar». João Pina não fala apenas de dirigentes: «Não só os dirigentes, eles não vivem sozinhos. Se falarem e não lhes derem voz, não têm o mesmo impacto. Dirigentes, árbitros, comentadores. Isto não tem uma solução única, só um dos agentes não consegue fazer uma alteração.»

Quanto aos erros dos árbitros propriamente ditos, os caminhos também não são óbvios. João Pina lança a reflexão, por exemplo, sobre a questão da tecnologia. «Recentemente estive numa conferência internacional com o Vítor Pereira. . Percebemos que é um problema transnacional, falou-se na introdução de novas tecnologias, a maior parte dos árbitros concorda, mas estamos a falar de uma percentagem tão baixa de situações em que podia ajudar que é preciso perceber se o investimento de facto compensa o número de decisões em causa.»

Depois deste livro, está para breve a publicação de um outro, mais centrado em casos concretos de jogos da Liga. Vítor Pereira diz que esse outro livro pretende «desmistificar» algumas das questões que se colocam a cada jornada. Sobre a hipótese de vir a fazer isso de forma regular, depois de cada jornada da Liga, como forma de tornar as decisões mais claras, deixa tudo em aberto.

«Sou adepto do experimentalismo. Sem experimentar não sabemos se pode resultar», diz Vítor Pereira, admitindo que seja uma opção para o futuro, , mas defendendo também que depende de «o profissionalismo no topo estar devidamente implenmentado»: «Ainda não existem condições.»

Também deixa em aberto outro caminho, adotado em Espanha, o da divulgação dos relatórios dos árbitros: «Se for entendido que é útil, não vejo qualquer problema.»